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Inovação & PI

'Não se adquire hard skill em tecnologia sem ter profundidade'

Carmela Borst é fundadora e CEO da SoulCode Academy, EdTech brasileira dedicada a democratizar o ensino da tecnologia em um país com forte déficit de mão de obra qualificada neste setor. Com passagens pela vice-presidência da Oracle e da Aon, ela compartilha suas experiências, faz um panorama do mercado de tech e os avanços nos campos da diversidade

Foto: Divulgação

Primeiramente, gostaria de falar um pouco sobre a SoulCode Academy. Como a EdTech funciona e quais são seus principais objetivos?

A SoulCode nasceu de um grupo de executivos de tecnologia. Eu sou a fundadora. Os três sócios, nós ficamos muitos anos neste mercado. Eu costumo dizer que ela nasceu de uma grande inconformação com essa dicotomia brasileira, que de um lado a gente tem 9 milhões de desempregados, 30 milhões de invisíveis, e do outro, fala-se em um número oficial de quase 800 mil vagas, mas a gente sabe que com toda movimentação pós-pandemia esse número já passou de um milhão. Ou seja, são um milhão de vagas que não são fechadas por falta de capacitação. A gente nasceu para fazer essa ponte. E com essa inconformidade, mas uma inconformidade positiva, que é aquela quando a gente vê que tem um problema e tem uma solução muito humanizada para que aconteça.

Nós somos uma EdTech brasileira de inclusão digital, impacto social, diversidade e empregabilidade. A gente faz essa ponte, a gente faz uma capacitação através de bootcamps que as pessoas participam gratuitamente. E como todos nós somos especialistas, o que a gente sabe em tecnologia é que o que vale são horas de treinamento. Você faz um treinamento muito profundo – e aqui a gente está falando de 3 meses, 800 horas, 10h por dia, começando com 1h de inglês para tecnologia, pois este é um grande desafio, e trabalhando metodologia ágil para solução de problemas. Eles entram automaticamente em um squad, ao final do dia eles trabalham a solução de um problema. Mas o que tem por trás disso que eu acho que é o principal e talvez nossa grande diferença em relação a outras EdTechs? A gente trabalha para que aconteça o impacto social de fato com diversidade – eu sou uma mulher que ficou 25 anos na área de tecnologia. Eu venho de um tempo que a mulher mal ocupava essas posições. Eu entrei como analista e saí como vice-presidente. Claro que continuam sendo posições pouco ocupadas por mulheres, então esta é uma causa para mim bastante forte.

Quando a gente fala de inclusão, a gente tem dois tipos no Brasil: a inclusão social e um termo que a gente vai começar a ouvir bastante, finalmente, que é a vulnerabilidade digital. Quando a gente fala de inclusão digital, a gente está falando de fato e de direito. Essa vulnerabilidade digital é muito focada não só nas pessoas que estão na vulnerabilidade social, mas aquelas que se a gente não trouxer imediatamente para uma profissão digital, elas passam a ficar desempregadas, ou vão para um subemprego. Aí a gente não está falando só de jovens, mas sim de uma diversidade etária muito grande. A gente fala de diversidade em todos os sentidos.

Nosso maior diferencial é esse: a gente não se preocupa só com a capacitação, mas que ela seja profunda e rápida. A gente trabalha muito fortemente os desempregados. E quando a gente fala de desempregados, a gente traz um número enorme de diversidade. E a gente trabalha esses dados de modo bastante forte internamente. Todas as turmas sempre têm mais de 50% de mulheres, mais de 40% de pessoas negras, e a gente trabalha também a questão geográfica bastante forte. A gente acredita que esse é o poder da tecnologia.

Você atuou em grandes empresas de tecnologia, como a Oracle e a Aon. Como você avalia o panorama de diversidade nas grandes corporações?

Quando eu olho para trás e vejo o momento, eu acho que melhorou muito, mas tem muito caminho a ser seguido. Hoje ainda apenas 20% destas posições nas empresas de tecnologia são ocupadas por mulheres. Dessas apenas 5% por mulheres pretas. E fala-se em 2% ou 3% de mulheres na liderança. Então quando a gente olha este número, é um número que ainda tem muito o que crescer na área de tecnologia. São feitos muitos esforços, inclusive nas empresas onde trabalhei – quando olho para trás, vejo que muitas mudanças foram feitas. Mas tem uma questão de mercado, que eu diria que é uma questão cultural, conceitual e acadêmica; é a gente buscar nas bases para que essa diversidade aconteça. E eu não estou falando só de mulheres, estou falando de uma diversidade geral.

No último ano o Brasil viveu uma onda de demissões em massa nas startups – os chamados layoffs. Como este cenário impactou a SoulCode? Como vocês foram envolvidos?

Primeiro eu aprendi que, quando a gente vem para o mundo da startup, tem que pensar o tempo todo em novas soluções, buscar novos mercados, entender novas indústrias e movimentos. Quando a gente fala de big techs existe uma leitura de que elas fizeram essas demissões e que impactou a área de desenvolvimento – e aqui estou falando dos developers. Quando você olha em regra geral, e fizemos um estudo bastante forte, eles foram os que menos foram cortados. Primeiro houve um movimento em que todas aproveitaram para cortar aquilo que estava sobrando. E não sobram desenvolvedores. Isso é um ponto bastante bacana de falar, porque tem uma mistificação. As empresas estão contratando; o desenvolvedor é o core do negócio. Basta ver o próprio Twitter, que mandou muitas pessoas embora, mas garantiu que os desenvolvedores estivessem lá.

No Brasil, na maioria das big techs, a área de desenvolvimento não está aqui, está lá fora. Elas têm aqui apenas um suporte. Então esses cortes não afetaram diretamente essa área. Nas startups você tem razão, mas também foram muito nos back offices. Em startups o core dela normalmente está ligado com tecnologia, então muito dificilmente ela manda desenvolvedores embora. Então essa desmistificação é muito importante porque todo mundo fala: “E agora, que congelou?”, e não é esse o caminho.

Quando a gente faz uma formatura, eu costumo dizer: ninguém tira o que vocês aprenderam. E uma pessoa que tem uma bagagem técnica e tecnológica, ela tem, se não for emprego, no mínimo tem trabalho garantido para o resto da vida. Porque ela vai poder trabalhar aquilo de diversas formas – desde uma multinacional até trabalhar um website para a comunidade dela.

Mesmo em cima dessas demissões, se você olhar o mercado, essas pessoas estão sendo admitidas em outras indústrias. E eu traria aqui uma em especial, que é o agribusiness. Muitas dessas pessoas saíram da área de tecnologia e estão sendo admitidas no agronegócio porque é uma área na qual definitivamente a tecnologia chegou. E tem um déficit enorme de mão de obra: são mais de 180 mil vagas, 80% delas não são ocupadas. Só que aqui a gente está falando de novas profissões, novas carreiras. A gente fala do operador de drones, mas tem o data drone, por exemplo, que é quem vai colher aquelas informações que são captadas no drone.

No fundo, você tem que se adaptar, buscar novas oportunidades e desmistificar um pouco toda essa onda.

Quais as principais competências exigidas hoje no mercado para um profissional de tech? Seja soft skills ou hard skills.

Hard skill eu diria que ele tem que ter profundidade, porque a gente não adquire hard skill em tecnologia sem ter profundidade. E eu transformo isso em horas. Eu vejo algumas iniciativas falando: “vamos formar mil devs”, aí você vai olhar, são quantas horas? Cerca de 40 horas. Em 40 horas, ele mal aprende o que é programação ou lógica de programação. A gente está falando de muita profundidade. Com muita profundidade, 800 ou 900 horas, qualquer um aprende hard skills, porque ele é uma questão prática. A própria inteligência artificial está vindo apoiando bastante isso, e a gente já está trabalhando isso: tem correção de código automática, tem ferramentas para aprender hard skills. Claro, você tem que se empenhar, tem que estar focado, tem que querer, mas isso é possível. Onde eu acho o maior diferencial é nas soft skills.

Eu venho de uma época que se falava muito que o programador não trabalhava com ninguém, era só deixar ele lá. Eu já achava isso uma lenda na época, hoje isso definitivamente não existe. A gente trabalha por squads, tem uma solução de um problema e a inovação pede que seja um grupo totalmente diverso, porque se ele for exatamente igual ele não vai inovar. E o programador, a pessoa de tecnologia, está ali no meio. Tem que trabalhar a questão da comunicação muito bem; tem que ter uma escuta generosa, ativa, senão você não ouve seu cliente, então é uma soft skill muito importante. Tem uma questão também de team work. E no nosso caso, como a gente traz pessoas de diversos lugares, a gente traz da favela aos desempregados +50, a gente trabalha muito a questão da autoestima, para que essas pessoas entendam que elas podem e devem ocupar esses lugares. Eu diria que o maior desafio está nos soft skills. Tem um ditado que diz que você contrata pelo hard skill e demite pelo soft skill, e eu acredito bastante nisso, e a gente trabalha nisso.

A gente trabalha com o Instituto Ser+, que é um instituto que faz um trabalho forte semanalmente com todos os nossos alunos. E a gente tem um grupo que a gente chama de “Sisters & Brothers” que são executivos de todos os lugares e cargos que a gente faz mentorias, trabalhando exatamente a questão dos soft skills, como prepará-los para uma entrevista, como vai ser o mundo corporativo. Então, sem dúvida nenhuma soft skill finalmente estão sendo considerados nas empresas.

Segundo pesquisa Data Favela 2023 divulgada em março, o Brasil conta com 17,9 milhões de moradores nestas comunidades, cuja movimentação financeira ultrapassa a marca de R$ 200 bi. Dada a grandiosidade deste contingente, como você avalia as iniciativas de democratização do ensino com viés tecnológico e o alcance às periferias? Como vocês se inserem neste cenário?

O Data Favela vem de uma pessoa que eu respeito muito, que é o Renato Meirelles, junto com o Celso Athayde; eles são os fundadores. Eu trabalho muito a questão da favela – inclusive sou conselheira da Casa do Zezinho, Gerando Falcões… Recentemente nós lançamos junto com a Cufa e a Favela Holding um grande projeto de democratização da tecnologia chamado Favela Code exatamente por esse tema.

Em 2015 eu estava na Oracle ainda quando fiz, junto com o Edu Lyra, a primeira classe de programação para moradores e jovens da favela. Imagina, na época, chegar em uma multinacional e fala que vai fazer uma classe de programação em uma favela? A favela estava fora do mapa, finalmente ela está. E aqui tem uma provocação bem importante que eu uso muito: a gente está falando de questões econômicas. A gente não está falando só de devolver para a sociedade, mas também. Mas a gente está falando de uma questão econômica e que as empresas definitivamente têm que se movimentar. Tem aí, como você falou, R$ 200 bilhões. Você vai buscar de uma forma que você devolva para a favela a riqueza que ela tem. Eu acho que esse é o principal. Não é só ir lá buscar esse consumidor, porque ele está na favela, não no asfalto, portanto você, como empresa, também tem que estar na favela. E, uma vez que você está buscando esse consumidor, você tem que devolver essa riqueza para dentro da própria favela. A gente acredita muito nisso. Obviamente, por não ser de favela, a gente tem que buscar quem está, quem entende e quem definitivamente sabe o que tem que ser feito lá dentro. O que a gente faz é levar a metodologia e essa crença de que é possível. E a gente tem visto isso entre nossos alunos nas nossas formações – são quase 2 mil em bootcamp. Não importa realmente a sua condição social, sua condição acadêmica: para você ser programador você precisa ter lógica. E a lógica ela é algo que não tem explicação, é um bit que vem ligado. Não importa nenhuma diversidade que você tenha: se você tiver lógica, você vai conseguir programar.