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Coluna: Licks Attorneys

Anotação de patente: repercussões de recente decisão da Justiça Federal do Rio de Janeiro

Por: Roberto Rodrigues e Tatiana Machado

Uma recente decisão proferida pela 9ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro (SJRJ) pode acarretar mudanças significativas na asserção de patentes no Brasil. Em ação declaratória de nulidade de patente ajuizada pela filial brasileira da sociedade empresária indiana Sun Pharma contra a sociedade alemã Boehringer Ingelheim, o Juízo da 9ª Vara Federal da SJRJ concedeu tutela provisória de urgência ordenando ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) anotar que uma patente de segundo uso médico da Boehringer – cobrindo o medicamento Ofev – não impede a fabricação ou a venda de medicamentos genéricos ou similares à base de nintedanib para outros usos médicos.

A decisão é inédita. A Lei nº 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial – LPI) prevê que “[o] INPI fará as seguintes anotações: […] II – de qualquer limitação ou ônus que recaia sobre o pedido ou a patente”. Outros fabricantes de genéricos já tentaram no passado, sem sucesso, usar essa disposição legal como fundamento em ações judiciais buscando que o INPI anotasse limitações relacionadas ao escopo da patente concedida. Em 2020, por exemplo, a sociedade empresária brasileira Cristália ajuizou ação em face da sociedade suíça Novartis e do INPI com pedido liminar para que o INPI anotasse que a patente de segundo uso médico PI0114870-2 – cobrindo o medicamento Glivec – não impedia a fabricação e a venda de medicamentos à base de imatinibe para outros usos médicos além de tumores estromais gastrointestinais (GIST). O pedido liminar foi indeferido em primeira instância. A Cristália interpôs um agravo de instrumento para o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2). A tutela antecipada recursal foi negada pela Desembargadora Federal Relatora Simone Schreiber. O caso nunca foi decidido pela Turma, pois as partes celebraram um acordo antes que isso fosse possível.

Em Sun Pharma vs. Boehringer, esta interpôs agravo de instrumento contra a decisão de primeira instância. O recurso foi coincidentemente distribuído para a Desembargadora Federal Simone Schreiber, que negou o pedido de efeito suspensivo da Boehringer. No caso Cristalia v. Novartis, a Desembargadora Federal Simone Schreiber afirmara que a anotação buscada pela Cristália consistia em “declaração parcial de nulidade” da patente, com “o condão de frustrar a expectativa” do titular. A desembargadora destacou, ainda, que mesmo que a Novartis viesse a tentar extrapolar o escopo de proteção patentária, a Cristália teria a oportunidade de discutir essa conduta no foro adequado – ou seja, na justiça estadual, onde tramitam as ações de infração. No recente recurso da Boehringer, todavia, a Desembargadora Federal Simone Schreiber ponderou que “a anotação determinada pelo Juízo a quo apenas reforçou o escopo da proteção patentária, não se tratando de declaração parcial de nulidade da patente por uma via transversa.”

O agravo de instrumento ainda precisará ser decidido pela Segunda Turma Especializada do TRF2, o que deve ocorrer dentro de alguns meses. Considerando a falta de jurisprudência específica, o impacto desse julgamento não pode ser minimizado.

A briga entre Sun Pharma e Boehringer

Desde 2021 que Sun Pharma e Boehringer vêm disputando o mercado brasileiro de medicamentos à base de nintedanib. Naquele ano, a Sun Pharma ajuizou em face da Boehringer uma ação declaratória de não-infração das patentes PI0312811-3 (para uma forma específica do composto nintedanib) e PI0913434-4 (para uma formulação contendo esse composto). A demanda foi proposta perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). O processo corre em segredo de justiça.

Em 13/06/2023, a Sun Pharma ajuizou uma ação de nulidade de patente perante a SJRJ e uma ação declaratória de não-infração perante o TJSP acerca da patente PI0519370-2 (para segundo uso médico do composto). Nesse mesmo dia, a Boehringer ajuizou uma ação de infração com base nessa patente perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).

Seguiu-se uma interessante sequência de decisões. Em 16/06/2023, o Juízo da 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro concedeu a tutela de urgência em favor da Boehringer, ordenando a Sun Pharma a cessar a fabricação, a venda e a importação de medicamentos genéricos e similares contendo esilato de nintedanibe, “que possa ser usado no tratamento de fibrose pulmonar idiopática.” Em 26/06/2023, o Juízo da 9ª Vara Federal da SJRJ proferiu a decisão supramencionada, determinando a anotação na patente da limitação relativa aos usos não-patenteados do nintedanibe. Em 28/06/2023, o Juízo da 1ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem de São Paulo concedeu medida liminar em favor da Sum Pharma, ordenando a Boehringer a abster-se de “intentar quaisquer medidas que visem a obstar a distribuição e comercialização do medicamento similar Nidhi […] por alegada infração da patente PI0519370-2, desde que com objetivo de outros usos que não prevenção ou tratamento de fibrose pulmonar idiopática.”

O Juízo de São Paulo também afirmou a sua competência para processar a julgar todos os casos relativos à infração do portfólio de patentes da Boehringer para o nintedanibe, por força da prevenção gerada pela primeira ação de não-infração ajuizada pela Sun Pharma em 2021. Ato contínuo, suscitou o conflito positivo de competência, ordenando a expedição de ofício para o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em 14/07/2023, o Ministro Og Fernandes do STJ proferiu decisão em regime de plantão determinando a suspensão dos processos nas justiças estaduais, cassando a decisão proferida na ação de infração da Boehringer (ao menos até posterior deliberação pelo relator do conflito de competência, Ministro João Otávio de Noronha), e designando o juízo da 9ª Vara Federal da SJRJ “como provisoriamente competente para examinar as medidas urgentes relacionadas à proteção conferida pela PI0519370-2.”

Ausência de regime de skinny labeling no Brasil

            Em países onde existe o denominado skinny labeling ou carve out, os fabricantes de genéricos e similares têm a opção de obter o registro sanitário apenas para usos não-patenteados de um composto, contornando, assim, ao menos em princípio, a violação de patentes de segundo uso médico. Isso não é uma opção no Brasil.

Segundo a normativa atualmente em vigor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), as bulas dos medicamentos genéricos e similares precisam seguir a estrutura e o conteúdo do medicamento listado como referência (art. 14 da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 47 de 2009). Não há exceção prevista para indicações terapêuticas patenteadas.

Em dezembro de 2002, a Diretoria Colegiada da ANVISA abriu consulta pública (até março de 2023) sobre uma proposta de alteração da RDC nº 47 de 2009, a qual permitiria a exclusão de uso médico patenteada das bulas de medicamentos genéricos e similares. Porém, enquanto essa alteração não é aprovada, tais medicamentos devem indicar nas suas bulas as mesmas indicações terapêuticas (incluindo usos patenteados) que o medicamento listado como referência.

A decisão da Justiça Federal na ação de nulidade Sun Pharma vs. Boehringer

Como premissa para ordenar a anotação da patente de segundo uso médico da Boehringer, o Juízo da 9ª Vara Federal da SJRJ destacou que “[nos] termos da aprovação regulatória do medicamento de referência, é impossível que os genéricos/similares não prevejam a indicação terapêutica relacionada ao privilégio.” Ainda, reconheceu-se que “a exigência infralegal da ANVISA na RDC 47/2009 inviabiliza a venda de um medicamento com a exclusão de indicação terapêutica para que exista direito de exclusividade relacionado. Considerando que há necessidade de se prever em bula a indicação terapêutica relacionada à patente de segundo uso médico, é possível que se argumente que a simples fabricação do medicamento genérico ou similar configura infração da patente de segundo uso médico.” Esse sistema regulatório, de acordo com o juízo, gera “uma extensão do escopo da exclusividade conferida pelo INPI, e um potencial abuso do direito de patente.”

A decisão de ordenar a anotação da patente da Boehringer foi fundamentada na “gravidade dos danos causados à saúde pública e à livre concorrência pelos efeitos concretos da patente PI0519370-2”.

Em essência, essa decisão não muda realmente o status quo. Afinal, apenas determinou que o INPI anote um fato incontestável sobre a patente PI0519370-2: ela só pode ser utilizada contra a fabricação e a venda de medicamentos genéricos e similares à base de nintedanibe em relação ao uso patenteado. Porém, esses medicamentos, por conta da citada exigência regulatória, continuarão a ter a mesma bula do medicamento listado como referência – o que inclui o uso patenteado.

Não obstante, tal decisão – que foi inclusive citada pelo TJSP como fundamento para a concessão da medida liminar na ação de não-infração da Sun Pharma – pode acarretar dificuldades na asserção da patente da Boehringer. As licitações para aquisição de medicamentos nem sempre divulgam a indicação terapêutica específica para a qual o produto está sendo adquirido. No setor privado há ainda menos transparência. Como poderão as justiças estaduais ter certeza de que o fabricante de genérico ou similar está respeitando o uso patenteado? No mínimo, os advogados que representam os titulares de patentes terão que ser mais criativos e diligentes no monitoramento das atividades desses fabricantes.

Há outra consequência importante que pode derivar da decisão da 9ª Vara Federal da SJRJ, afetando os litígios de patentes para além dos casos farmacêuticos. Conforme mencionado no início deste artigo, trata-se de primeiro caso em que se determinou a anotação da interpretação de uma reivindicação patentária – e com base em disposição legal cuja aplicabilidade ao caso concreto é, no mínimo, questionável. O art. 59, inciso II, da LPI, não é um instrumento para o INPI esclarecer ou definir a interpretação da reivindicação. Até então, como deveria ser, o TRF2 determinou o apostilamento de patentes concedidas apenas para alterar reivindicações, mas nunca para fixar uma interpretação específica.

Na ação de nulidade de patente Sun Pharma vs. Boehringer, deixando de lado as potenciais questões em termos de efetividade da patente, não há controvérsia quanto ao escopo de proteção patentária. É inconteste que a patente cobre apenas um uso médico específico do composto. No entanto, há muitos casos nos quais há espaço para discussão acerca do escopo da patente – o qual, consoante o art. 41 da LPI, deve ser definido pelo quadro reivindicatório interpretado à luz do relatório descritivo e dos desenhos. A atuação do INPI se encerra no momento da concessão da carta-patente – ressalvadas hipóteses pontuais legalmente previstas – de modo que não cabe se falar em atuação da autarquia na interpretação da patente como premissa para a asserção na esfera judicial.

A decisão da Justiça Federal cria, portanto, um risco razoável de que alegados infratores busquem perante a Justiça Federal uma ordem para que o INPI anote uma limitação que não seja tão clara – nem inconteste – sobre o escopo da patente. Nesse caso, estaríamos diante não apenas de uma discussão pertinente aos fundamentos jurídicos dessa determinação, mas também de um potencial conflito de competência, na medida em que juízes federais estariam vinculando juízes estaduais à sua interpretação das reivindicações da patente.