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ESG

'Lembrar a história é honrar aqueles que lutaram e continuam lutando por igualdade'

Na terceira entrevista Especial do Orgulho, conversamos com Luciana Martorano, sócia da área Antitruste & Concorrencial do Campos Mello Advogados em cooperação com o DLA Piper

Luciana Martorano, sócia da área Antitruste & Concorrencial do Campos Mello Advogados, é a terceira entrevistada da série Especial do Orgulho. Nesta conversa, falamos sobre os panoramas dos direitos da população LGBT+ em diferentes países e as diferenças nos avanços e retrocessos em cada conjuntura.

“Esse cenário global que reflete uma mistura de progresso e retrocesso destaca a necessidade contínua de advocacy e proteção dos direitos humanos para todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual ou identidade de gênero”, analisa.

A sócia destaca os importantes avanços do Brasil na garantia de direitos, especialmente por vias judiciais.

“Desde 2010, o STF garante o direito legal à adoção e, em 2013, reconheceu a validade do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Em 2018, a Corte permitiu a mudança de gênero nos documentos pessoais sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual e, em 2019, decidiu criminalizar a homofobia e transfobia, equiparando-os ao crime de racismo”, lembrou.

A série Especial do Orgulho é parte das celebrações do 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBT+, que este ano marca os 55 anos da Batalha de Stonewall, um marco global na luta por direitos.

 

Leia a entrevista na íntegra:

Nesta sexta-feira, 28 de junho, se celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBT+. O que há para se comemorar?

Há muito a se comemorar no Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+.

Esta data celebra a diversidade, a luta pelos direitos humanos e a visibilidade das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e outras identidades de gênero e orientações sexuais não normativas.

A data tem raízes na resistência contra a discriminação e violência enfrentadas pela comunidade. Lembrar a história de luta é uma forma de honrar aqueles que lutaram e continuam lutando por igualdade.

Confira as outras entrevistas da série:

Na maioria dos países, pudemos observar nas últimas décadas avanços significativos na conquista de direitos civis e igualdade para pessoas LGBTQIAP+ como o direito ao casamento igualitário, legislação antidiscriminação, e reconhecimentos civis das identidades de gênero.

Apesar dos avanços, ainda há muito a ser feito. Muitas pessoas LGBTQIAP+ ainda enfrentam discriminação, violência e falta de direitos básicos e a ascensão ao poder de governos ideológicos de extrema direita em várias partes do mundo também tem sido vista como um alerta de ameaça aos direitos já conquistados e aos progressos que esperávamos para os próximos anos.

Nesse contexto, o Dia do Orgulho também é um lembrete da necessidade contínua de lutar por justiça e igualdade para todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

 

Qual sua percepção sobre o atual panorama de direitos LGBT+?

O panorama dos direitos LGBTQIAP+ varia significativamente de país para país. Felizmente, o Brasil está inserido no rol dos ordenamentos jurídicos mais progressistas nessa matéria.

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido pioneiro na garantia de direitos civis a pessoas LGBTQIAP+, preenchendo uma lacuna que deveria ter sido solucionada pelo Poder Legislativo há muito tempo.

Desde 2010, o STF garante o direito legal à adoção e, em 2013, reconheceu a validade do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Em 2018, a Corte permitiu a mudança de gênero nos documentos pessoais sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual e, em 2019, decidiu criminalizar a homofobia e transfobia, equiparando-os ao crime de racismo.

Apesar da constante evolução das decisões do Supremo, o Brasil vem sucessivamente se consagrando líder no posto de país mais homotransfóbico em todo o mundo. De acordo com pesquisa realizada pelo Grupo Gay Bahia (GGB) – uma das mais importantes Organizações Não Governamentais (ONG) LGBT da América Latina – o Brasil teve 257 mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ no ano de 2023, sendo 127 homicídios de travestis e transgêneros, 118 gays, 9 lésbicas e 3 bissexuais. Apesar de alarmante, a ONG ainda aponta para o fato de que esses números são provavelmente subestimados em razão da subnotificação.

Esse contraste de garantia de direitos versus violência infelizmente denota a disparidade entre a evolução jurídica e social do nosso país. Se, de um lado, temos direitos fundamentais reconhecidos pelo Poder Judiciário, de outro, temos um cenário de violência sanguinária emanada no âmbito civil. A existência de sanção legal contrastada à ausência de sanção social (ou interna) e de sanção moral, ou, em palavras kantianas, a falta da moralidade da legalidade, evidencia o quanto ainda temos que evoluir para nos tornarmos uma sociedade mais tolerante à diversidade.

Em relação aos demais países do mundo, temos vivenciado progressos constantes e abrangentes sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e ampliação da esfera de direitos por meio da aplicação – tanto em esfera privada, quanto pública – de metas não apenas qualitativas, mas também quantitativas (cotização) de diversidade e inclusão.

Em contraste, a ascensão ao poder de governos ideológicos de extrema direita em várias partes do mundo também tem sido vista como um alerta de ameaça aos direitos já conquistados e aos progressos que esperávamos para os próximos anos.

Na Itália, vimos um exemplo recente de retrocesso extremo. Após a ascensão da primeira-ministra Giorgia Meloni, de extrema direita, cuja campanha para as eleições em 2022 foi baseada em slogans anti-LGBTQIAPN+, a Itália passou retirar da certidão de nascimento de crianças nascidas da união de lésbicas o nome da mãe que não engravidou. Uma verdadeira afronta à dignidade não apenas dos filhos frutos dessas uniões, mas também das próprias mães homoafetivas. Algo impensável para um país membro da União Europeia.

Nessa semana, a França infelizmente mostra que segue para o mesmo caminho após o Partido da França pertencente ao movimento de extrema direita liderado por Marine Le Pen, ter distribuído na região do Lorraine cartazes com um garoto branco, de olhos azuis e um xenófobo slogan: “Vamos dar futuro às crianças brancas”.

Além desses retrocessos, vale a pena lembrar que, infelizmente, em muitos lugares do mundo – especialmente em países africanos, asiáticos e do Oriente Médio -, pessoas LGBTQIAP+ encontram uma realidade ainda pior: são marginalizadas, criminalizadas e enfrentam total carência de direitos, além de diversos tipos de violências severas.

Esse cenário global que reflete uma mistura de progresso e retrocesso, destaca a necessidade contínua de advocacy e proteção dos direitos humanos para todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual ou identidade de gênero.

 

Quais foram os seus principais desafios profissionais como uma pessoa LGBT+ no mercado de jurídico?

 Ao longo da minha carreira, tive a felicidade de testemunhar mudanças significativas nos escritórios de advocacia que favoreceram as condições de trabalho dos advogados LGBTQIAPN+, refletindo mudanças sociais mais amplas e a evolução das atitudes no setor jurídico.

Quando entrei no mercado de trabalho, em 2003, como estagiária em uma das grandes bancas de advocacia da capital paulista, havia um sentimento palpável de discriminação e preconceito que poderia se manifestar de forma sutil, como tratamento diferenciado ou exclusão, até formas mais explícitas, como comentários homofóbicos ou transfóbicos.

Também havia um panorama geral de falta de representatividade e inclusão. Apesar de todos saberem que havia sócios e associados gays e lésbicas, poucos tinham tido a coragem de sair do armário e a cultura do Don’t ask, don’t tell ainda imperava.  A falta de representatividade da diversidade levava a uma sensação de isolamento e de falta de oportunidades de avanço na carreira para profissionais LGBTQIAPN+.

Nesse contexto, a ideia de me identificar abertamente como lésbica parecia assustadora, se não impossível. Soma-se a isso o fato de eu ser mulher – o que já acrescenta outra camada à barreira de preconceitos que pessoas LGBTQIAPN+ com interseccionalidade de raça e gênero enfrentam.

Ora, todos sabem que a realidade do mundo jurídico sempre foi predominantemente masculina, branca e heteronormativa. Nessa realidade, é claro que uma mulher transgênero negra provavelmente deve ter sofrido mais preconceitos e discriminação ao longo da vida do que eu que, mesmo sendo uma mulher lésbica, sou branca e cisgênero. Pensar na existência das interseccionalidades e das posições de privilégio é importante para que consigamos desenvolver políticas de diversidade mais efetivas.

Ao longo dos anos, as iniciativas de diversidade e inclusão começaram a aparecer na advocacia privada que se viu, no começo dos anos 2010, pressionada a copiar as políticas de D&I já estabelecidas pelos clientes (empresas multinacionais) e pelos parceiros de negócios dos escritórios (grandes bancas internacionais).

Em 2014, quando ingressei no TozziniFreire Advogados, a minha perspectiva mudou. O escritório – apesar de tradicional – possuía um ambiente um pouco mais descontraído, amistoso e informal do que a maioria das grandes bancas paulistanas, além de contar com bastante sócios, sócias, associados e colaboradores integrantes da comunidade LGBTQIAPN+.

Aos poucos, fui abrindo a minha vida pessoal – e a minha orientação sexual. Comecei a participar ativamente da formulação do programa oficial de diversidade do escritório e acabei saindo do armário em rede nacional, quando estampei a capa da matéria da Exame “Conheça as empresas que abraçaram a causa LGBT no Brasil”.

Nos anos seguintes, os “programas” de diversidade explodiram nos escritórios e, hoje, é difícil encontrar escritórios full-service e de médio porte que não tenham institucionalizado a causa LGBTQIAPN+ e outros temas de diversidade em suas cartilhas e manuais de compliance.

É claro que o mundo dos escritórios de advocacia ainda é bastante diverso e que a implementação de programas de diversidade não necessariamente represente apenas a vontade de promover ambientes verdadeiramente equitativos e acolhedores.

Mas, no final do dia, o importante é que, progressivamente, os escritórios vêm entendendo que, de fato, a diversidade traz inúmeros benefícios ao fomento de negócios que se revertem diretamente em lucros e resultados. E que preparar o seu ambiente para receber de forma empática a maior gama de pessoas possível não se constitui em “favor” para a sociedade e para os colaboradores, mas, sim, em obrigação à observância de direitos individuais que existem e devem ser respeitados.

Hoje, sou sócia de um escritório que abraça a causa LGBTQIAPN+ e outros temas de diversidade em todas as formas possíveis. Temos sócios, sócias, associados e colaboradores representando quase todas as letras da sigla. Investimos no treinamento do time e praticamos uma política e tolerância zero a qualquer forma de discriminação e preconceito.

Embora seja encorajador ver estas mudanças positivas, os desafios persistem, principalmente em ambientes jurídicos governamentais (ex. Poder Judiciário) e escritórios de advocacia de menor porte que não são tão expostos às exigências de grandes empresas e de clientes internacionais e muitas vezes não podem fazer investimentos estruturados nas pautas de diversidade.

 

Quais são as particularidades para profissionais LGBT+ no mercado jurídico, em especial em áreas como Controle de Concentração, na qual você é ranqueada pela Leaders League?

Numa perspectiva geral, não vejo muitas diferenças. Talvez o fato de lidarmos no dia a dia majoritariamente com empresas de grande porte – e que, por isso, também dispõem, via de regra, de algum nível de letramento e educação LGBTQIAPN+ – possa minimizar a exposição de advogados que atuam na área antitruste a situações explícitas de discriminação e preconceito no dia a dia.

 

Como o Campos Mello Advogados trata temas de diversidade? Existem políticas específicas para grupos minoritários?

O CMA tem um compromisso contínuo e profundo com iniciativas de Diversidade e Inclusão, buscando promover um ambiente de trabalho diverso e inclusivo que transcende o âmbito corporativo. Sabemos que a construção de um espaço verdadeiramente inclusivo leva tempo, mas estamos dedicados a abordar esse tema com seriedade e comprometimento.

Nos últimos cinco anos, o número de líderes mulheres em nossa organização cresceu 143%, um feito notável no contexto do mercado brasileiro. Atualmente, as mulheres representam 62% da nossa equipe e 42% dos cargos de liderança. Além disso, temos promovido importantes iniciativas focadas em diversidade e inclusão, principalmente envolvendo questões LGBTQIAP+ e de Raça & Etnicidade.

Em 2019, lançamos o “Programa Mais Empatia – Programa de Diversidade e Inclusão do CMA”, no qual foi constituído o Comitê de Empatia, formado por sócios e lideranças do backoffice para garantir o acompanhamento de ações e projetos essenciais para um ambiente diverso e inclusivo como treinamento e conscientização sobre diversidade e inclusão (D&I), palestras sobre letramento racial, diversidade geracional, práticas antirracistas e antimachistas, combate à LGBTfobia, visibilidade trans, equidade de gênero e sensibilização para deficiência.

Além dessas atividades, foram criados os Grupos de Afinidade, formados por membros voluntários focados em três pilares: Raça & Etnia, Gênero e LGBTQIAPN+. Esses grupos são fundamentais para fomentar discussões e desenvolver ações concretas que promovam a inclusão e o respeito à diversidade dentro da nossa organização.

Estamos também muito orgulhosos de promover, pelo segundo ano consecutivo, o Latin America Leadership Summit. Este evento destaca a liderança feminina e reúne clientes, potenciais clientes, sócias do CMA e do DLA Piper, bem como outras empresárias, para explorar e debater temas como a ascensão das mulheres no mercado de trabalho, raça, orientação sexual, inovação e o poder do networking feminino. Este é um dos eventos mais significativos que organizamos até o momento e reforça nosso compromisso com a inclusão e a diversidade.