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Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados

Teses podem ser interpretadas?

Artigo escrito pelas colunistas Teresa Arruda Alvim e Maria Lúcia Lins Conceição, sócias do Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados

As teses jurídicas, que vêm sendo elaboradas pelos tribunais que proferem decisões, que se consubstanciam em precedentes qualificados, ou precedentes vinculantes no sentido “forte”, são um poderoso instrumento para simplificar o funcionamento desse sistema.

É sabido que um dos grandes problemas da justiça brasileira são as ações repetitivas, isto é, aquelas que se repetem de modo idêntico pelo país afora, que normalmente expressam situações de litigância de massa. Neste contexto, a utilidade das Teses é bastante expressiva.

Devem estas teses necessariamente refletir o que foi decidido, sem que haja nem mesmo a necessidade de que abranjam o fundamento da decisão. Muito menos a ratio decidendi. Na verdade, de rigor, as teses não devem fazer referência à ratio.

Simplesmente porque não é função do tribunal que exarou a decisão, que consiste em precedente vinculante, apontar a sua ratio. As teses, na nossa opinião, devem ser o quanto possível secas: não abranger jamais aquilo que não foi objeto de decisão, nem ir além do que foi decidido, nem aquém. Não nos podemos esquecer que a tese deve espelhar o que se decidiu no recurso, preponderantemente a parte dispositiva.

Um exemplo vem a calhar: músicos não precisam estar inscritos em órgão de classe nem pagar anuidade para exercer sua profissão.

Teses de rigor não devem ser interpretadas, de molde a que se entenda que caberia dentro dela uma situação a que ela não faz referência.

Esta tese só pode ser aplicada aos músicos. Nestes casos é que se aplicam por exemplo os artigos 1030 e 1036, como logo adiante se explicará.

A interpretação “extensiva” da tese só pode acontecer à luz da ratio. Com isso queremos significar o seguinte: se se pretende aplicar esta tese ao advogado ou ao escultor, deve-se ler o acordão e dele extrair a ratio: dele só assim pode-se saber se aquela tese se aplica ou não às 2 profissões referidas. Na verdade, o que se estará aplicando não é a tese, mas a ratio.

Então seria melhor dizer: a aplicação “extensiva” da tese só é possível quando a ratio assim o autorizar.

A fundamentação do acórdão está em que a liberdade de expressão que envolve a atividade do músico, é uma garantia constitucional que não pode ser amesquinhada. Percebe-se, portanto, pelo exame desta fundamentação, da qual se pode extrair a ratio – o exercício de garantias constitucionais não podem ficar condicionados a ônus – que a regra se aplica aos escultores mas não ao médico.

A tese indubitavelmente só pode se aplicar aos casos idênticos. A tese não comporta interpretação extensiva de modo a que seja aplicada a casos considerados semelhantes.

Isso porque quando se pretende aplicar um precedente a casos semelhantes, a leitura do acórdão é imprescindível para que se possa compreender qual a sua ratio.

O tribunal a quo só pode impedir que subam recurso especial ou extraordinário quando já houver posição tomada daqueles tribunais no seio de um recurso extraordinário, de um recurso extraordinário repetitivo, ou de um recurso especial repetitivo. Mas essa posição deve estar inteiramente contida na tese, não podendo esta ser interpretada, sob pena de um tribunal a quo estar julgando o mérito. Em outras palavras: se o tribunal diz que a situação cuja apreciação se pretende submeter a um tribunal superior já foi por eles apreciada e decidida, mesmo quando o caso não seja absolutamente idêntico, mas apenas semelhante, devendo se por isso aplicar a mesma ratio, o que o tribunal está fazendo é julgar o mérito do recurso. Isto, óbvia e evidentemente, é vedado pelo sistema.

É intuitivo também que a suspensão prévia de todos os processos que estejam em curso no país versando sobre a mesma situação, só é possível se se tratar de casos absolutamente idênticos. Obviamente não se podem suspender todos os casos que devem ser decididos à luz da mesma ratio.

Isso já demonstra como esta automação só é possível quando se trata de litigância de massa. Ou, mesmo que não se trate propriamente de litigância de massa, como no caso dos músicos no exemplo dado acima, quando os fatos relevantes sejam exatamente os mesmos.

A ratio costuma ser um modo mais abstrato de se abordar a fundamentação. Consiste na estrutura fundamental do raciocínio jurídico que embasa a decisão naquele caso: portanto os elementos que devem ser levados em conta são: os fatos da causa, o argumento jurídico adotado, e a decisão. A partir destes três elementos se formula a ratio. Quanto mais abstrata ela for, mais casos abrangerá.

Vamos voltar ao exemplo dos músicos. Imagine-se a seguinte ratio: o exercício de garantias constitucionais não pode estar condicionado a qualquer espécie de ônus.

Pode-se evidentemente imaginar o alcance desta ratio. Assim como se pode perceber como é refinado, como pode ser complexo e como é fascinante o trabalho de se descobrir a ratio de um precedente. E, também, se antevê como a obediência aos precedentes é capaz de tornar o direito mais harmônico.

Percebe-se também uma dose razoável de discutibildade que existe com relação àquilo que seria a ratio. Assim como existe uma dose razoável de discutibilidade quando se interpreta a lei. Nada diferente.

Muitas vezes, o Código se refere aos precedentes pensando nisso, como ocorre no artigo 489 parágrafo primeiro. Mas várias outras vezes, o Código trata do sistema de presente precedentes como se fosse possível uma elevada dose de automação na sua aplicação. E é possível, mas numa certa e determinada dimensão. Nunca além dela.

Já vimos, ao longo da história, que a sentença não é um silogismo: a sentença não é a conclusão que decorre de duas premissas, lei e fatos. Proferir uma sentença envolve um caminho muito mais difícil e às vezes bastante complicado. Assim como que se percebeu, ao longo do tempo, entender sentença já como um silogismo era simplificá-la demais, deve-se desde já compreender que as decisões judiciais não podem se limitar à “aplicação” deu uma tese ao caso que está sendo julgado. Isto pode ocorrer sim como dissemos acima se se tratar de casos típicos da litigiosidade de massa, ou daqueles que são absolutamente idênticos. Mas fora disso, querer imprimir automação ao sistema de precedentes é certamente frustrar de modo definitivo que se venha a concretizar a sua verdadeira finalidade.

É por isso que, em nosso entender, não se deve adotar, automaticamente, a tese firmada no julgamento do Tema 466/STJ, objeto da Súmula 479/STJ, que diz respeito à responsabilidade objetiva da instituição financeira quando da ocorrência de abertura de contas ou concessão de empréstimos com documentos falsificados, roubo de malote de talões ou roubo de cofres dentro da agência bancária (“fortuito interno”), à situação em que o cliente deliberadamente entregou seu cartão e dados de sua conta bancária a terceiros, que deles fizeram uso indevido.

A automação que se quer imprimir ao sistema de precedentes no Brasil é total e completamente incompatível com os objetivos do sistema: gerar um direito coeso, coerente, harmônico, com respeito à isonomia e com uma dose saudável de previsibilidade. A diminuição do trabalho dos tribunais é uma consequência inexorável mas com certeza não pode ser considerada como a única finalidade do sistema de precedentes trazido pelo código. Deve ser tida, isto sim, como um efeito colateral. Daqueles que acontecem como decorrência natural de se tomar um remédio, que é feito para combater a doença. A doença que deve ser combatida pelo sistema de precedentes é a falta de previsibilidade, que torna o país inseguro, ambiente não desejado por empresas estrangeiras, num ambiente avesso à prosperidade.