Em 2024, importantes novidades na legislação, julgamentos de grande repercussão e decisões emblemáticas marcaram o direito penal brasileiro:
Em matéria de legislação, logo no início do ano, a Lei nº 14.811, de 12.01.2024, trouxe inovações com foco na proteção de crianças e adolescentes. Tipificou o bullying e o cyberbullying (art. 146-A do CP) e ampliou os crimes hediondos, incluindo o induzimento ao suicídio ou automutilação online, o sequestro e tráfico de menores de 18 anos. Também equiparou a crime hediondo o agenciamento de menores para fins de pornografia (art. 240, §1º e 241-B do ECA) e criminalizou a omissão dolosa de comunicação do desaparecimento de crianças ou adolescentes (art. 244-C do ECA).
No segundo semestre, foi sancionada a Lei nº 14.GG4, de 09.10.2024, que, com o intuito de combater a violência de gênero, tipificou o feminicídio como crime autônomo, com pena de 20 a 40 anos, e previu agravantes, como gestação, presença de menores ou descumprimento de medidas protetivas. Além disso, aumentou penas para lesão corporal, ameaça e descumprimento de medidas protetivas, estabeleceu prioridade processual e gratuidade de justiça para vítimas, e ampliou a proteção aos órfãos do feminicídio.
Embora transmitam o aparente compromisso do Estado em combater a violência contra crianças e adolescentes e contra mulheres, ambas as legislações, na prática, propõem soluções imediatistas para problemas extremamente complexos. Deparamo-nos, uma vez mais, com um já conhecido problema de política criminal: adoção de medidas legislativas severas, que oferecem respostas simbólicas à sociedade, sem a construção de alternativas eficazes para as causas estruturais de criminalidade.
2024 também foi marcado por julgamentos com grandes repercussões. No âmbito do STF, seguiram em evidência ações penais e investigações relacionadas à defesa do regime democrático e dos poderes constituídos em face de aventuras autoritárias. Dezenas de réus envolvidos na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em Brasília, em 08.01.2023, foram condenados, dentre eles o ex- deputado federal Roberto Jefferson, sentenciado por incitação aos atos (AP 2.493, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. sessão virtual de 09.12.2024 a 13.12.2024).
No STJ, o julgamento do ano foi o “Caso Robinho”, amplamente coberto pela mídia. A Corte Especial homologou sentença proferida na Itália, que condenou o ex-jogador à pena de nove anos de prisão por estupro, e confirmou a possibilidade de execução da pena no Brasil, em regime inicial fechado (HDE 7.986/IT, Rel. Min. Francisco Falcão, j. em 20.03.2024). A decisão baseou-se na Lei de Migração (Lei 13.445/2017), que permite que brasileiros natos cumpram penas estrangeiras em território nacional.
Ao longo de 2024, houve, também, importantes decisões no âmbito dos tribunais superiores que revelam um contínuo de aprimoramento do sistema penal brasileiro, com foco na eficiência da justiça criminal e na proteção dos direitos fundamentais.
Em abril, o STF decidiu que é ilegal o perfilamento racial em abordagens policiais, fixando o entendimento de que a busca pessoal deve estar fundada em elementos indiciários objetivos, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física (HC 208.240/SP, Rel. Min. Edson Fachin, j. em 11.04.2024).
Da Terceira Seção do STJ emergiram três teses sobre a valoração e a admissibilidade de confissões feitas à polícia no momento da prisão: (i.) a confissão extrajudicial somente será admissível se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial; (ii.) a confissão extrajudicial pode servir apenas como meio de obtenção de provas, não podendo embasar a sentença condenatória; e (iii.) a confissão judicial é lícita, mas para fins de condenação deve encontrar sustento nas demais provas, à luz do art. 197 do CPP (AREsp 2.123.334/MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. em 20.06.2024).
O reconhecimento de pessoas também foi objeto de relevantes decisões nas instâncias superiores. Em maio, a Ǫuinta Turma do STJ absolveu um homem que passou 12 anos preso devido a erros em procedimento de reconhecimento criminal, feito com inobservância às regras previstas no Código de Processo Penal. A decisão enfatizou que a apresentação isolada de fotografias e a ausência de testemunhas semelhantes ao suspeito violam o disposto no artigo 226 do CPP (HC 908.841/RJ, Rel. Des. Convocado Otávio de Almeida Toledo, j. 22.04.2024). Em outubro, a Segunda Turma do STF encerrou ação penal que se arrastava há 13 anos, na qual o réu havia sido reconhecido apenas por foto e estava preso preventivamente. Na decisão, foram citados estudos acerca de falsas memórias para reforçar a necessidade de estrita observância das normas previstas na legislação processual para fins de reconhecimento (HC 243.077/SP, Rel. Min. Edson Fachin, j. em 04.10.2024).
Ainda em matéria de prova, a Ǫuinta Turma do STJ reforçou a inadmissibilidade de provas digitais obtidas de celular sem os devidos cuidados para preservar a idoneidade e a integridade dos dados extraídos. O caso analisado envolveu prints de WhatsApp extraídos pela polícia sem a utilização de metodologias adequadas e sem registro das etapas da cadeia de custódia, imprescindíveis à confiabilidade Ddos dados (HC 828.054/RN, Rel. Min. Joel Paciornik, j. em 23.04.2024).
Sobrevieram, também, importantes decisões relacionadas a crimes sexuais. O STF fixou a inconstitucionalidade da desqualificação da mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher. Assim, como regra, não devem ser mais admitidas inquirições ou fundamentações sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais (ADPF 1.107, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. em 23.05.2024).
Em decisão paradigmática, a Sexta Turma do STJ concluiu que a simples discordância da vítima em prosseguir na relação sexual – quando essa negativa não é respeitada pelo agressor – basta para a caracterização do crime de estupro. O constrangimento configurador do núcleo do tipo do crime pode se dar mediante o uso de força física para vencer a resistência da vítima apresentada por meio do seu dissenso com o ato sexual. Ponderaram os Ministros a desnecessidade de reação heróica ou enérgica, pois o que o Código Penal exige implicitamente é o dissenso, que deve(ria) ser respeitado prontamente (Informativo 822, processo em segredo de justiça, Rel. para acórdão Min. Sebastião Reis Júnior, j. em 13.08.2024).
A Ǫuinta Turma do STJ fixou o entendimento de que o relacionamento entre adolescente maior de 14 e menor de 18 anos (sugar baby) e um adulto que oferece vantagens econômicas em troca de sexo configura o crime de exploração sexual previsto no artigo 218-B, § 2º, I, do Código Penal. Na decisão, concluiu-se que a prática fere os princípios de proteção à dignidade e ao desenvolvimento saudável dos adolescentes, que, nesta faixa etária, têm vulnerabilidade exacerbada por fatores como pressão social e falta de experiência (Informativo 825, processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, j. em 10.09.2024).
Merece destaque, também, pela grande repercussão que envolveu, a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, reconhecida pelo STF no Tema 506 de repercussão geral. A Corte fixou até 40g de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas como critério para diferenciação, a priori, entre usuário e traficante, até que o Congresso Nacional legisle a respeito. Em termos práticos, o ato de consumir maconha configura ilícito administrativo, não estando os usuários mais sujeitos a nenhum dos efeitos de uma sentença penal (RE 635.659, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 26.06.2024).
Em matéria de execução penal, merece ser celebrada decisão da Sexta Turma do STJ que concedeu prisão domiciliar a uma mulher trans, reafirmando a necessidade de condições dignas no sistema prisional. No julgamento, foram enfatizados os termos da Resolução CNJ 348/2020 para sublinhar que a determinação do local do cumprimento da pena da pessoa transgênero não é um exercício de livre discricionariedade do julgador, mas sim uma análise substancial das circunstâncias que objetivam resguardar a liberdade sexual, a integridade física e a vida da pessoa presa (HC 861817/SC, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado), j. em 06.02.2024).
Por outro lado, não passou imune a críticas a fixação da tese, pelo STF, de que a soberania das decisões do Tribunal do Júri, prevista na Constituição Federal, justifica a execução imediata da pena imposta, de modo a permitir que condenados por júri popular possam ser presos imediatamente após a decisão (Tema 1.068), a despeito da garantia – de igual estatura constitucional – da presunção de inocência (RE 1.235.340, Rel. Min. Roberto Barroso, j. em 12.09.2024).
Digno de nota, também, que, em 18.12.2024, quase no apagar das luzes de 2024, o STF homologou com ressalvas o Plano Pena Justa, apresentado pela União e pelo CNJ, com o objetivo de enfrentar as violações sistemáticas de direitos humanos nas prisões do país, reconhecidas no julgamento da ADPF 347. O plano está dividido em quatro eixos, compostos por metas e indicadores dos principais problemas do sistema penitenciário, como o controle das vagas e os processos de reintegração social
Como visto, 2024 foi pautado por iniciativas que buscam reforçar direitos fundamentais e aprimorar o sistema de justiça criminal. As decisões judiciais destacadas nesta breve retrospectiva refletem os desafios permanentes enfrentados por um sistema judiciário que busca equilibrar rigor, legalidade e respeito aos direitos humanos.
Para 2025, podemos esperar novos desdobramentos acerca dos atos antidemocráticos sob apuração junto ao Supremo Tribunal Federal; possíveis reflexos penais em torno de temas relacionados às apostas esportivas, recentemente regulamentadas, por conta dos riscos criminais associados a este mercado; contornos mais bem definidos acerca da cooperação das plataformas com o sistema de justiça em relação a conteúdos publicados por terceiros (Temas 987 e 533); além, possivelmente, do incremento dos debates pela criação de novos crimes relacionados a fraudes em companhias abertas e instituições financeiras, já objeto dos projetos de lei nº 091/2023, 2.581/2023.