Mangabeira Unger é filósofo e professor na Universidade Harvard, tendo ocupado por duas vezes o cargo de ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República do Brasil, durante os governos de Lula e Dilma. No período em que foi ministro de Lula, Unger participou de diversos planos de desenvolvimento, incluindo iniciativas voltadas para o Nordeste e para a Floresta Amazônica em 2008.
Em uma entrevista exclusiva ao Decisor Brasil, o filósofo comentou sobre a atual situação do Brasil em comparação ao período em que foi ministro, abordando também a polarização entre esquerda e direita, além das próximas eleições municipais e presidenciais no Brasil.
Confira a entrevista na íntegra:
Em 2008, você fazia parte do governo do Lula como ministro, e naquela época vocês tinham um dos planos de desenvolvimento voltado para o Nordeste e para a Floresta Amazônica, do qual você participou. Passados 15 anos, quais foram os principais desafios daquela época e quais foram os principais pontos que hoje, ao olhar para trás, você vê que foram conquistados e os objetivos alcançados?
Os mesmos problemas do Brasil continuam. O problema básico do Brasil não é a desigualdade, embora o Brasil historicamente seja um dos países mais desiguais na história da humanidade. Nosso problema fundamental é a mediocridade. Estamos resvalando em um primitivismo, um primarismo produtivo e educacional. O Brasil é uma grande anarquia criadora, mas negamos à grande maioria dos nossos cidadãos os instrumentos para transformar essa imensa vitalidade em ação construtiva fecunda.
Entre 1950 e 1980, o Brasil era um dos países que mais cresciam no mundo. Agora o Brasil está parado, caímos no abismo da cidade-nação. Isso é uma tragédia para o país. Esse é hoje o nosso principal problema.
Como você vê a polarização entre a esquerda e a direita no Brasil e no mundo, principalmente na Europa, que teve eleições recentemente? Existem caminhos que podemos observar para uma conversa entre esses dois lados?
Olha, o nosso problema básico no Brasil agora não é a polarização política. O curioso é que há duas tribos políticas, mas o impressionante é que, no fundamental, convergem. Dizem a mesma coisa. Ambas essas tribos priorizaram o financismo, a conquista da confiança financeira, e o pobrismo, assistencialista, do outro lado. Isso não desenvolve o país, não empodera os brasileiros, não resolve o nosso problema fundamental, que é a qualificação do aparato produtivo e dos brasileiros. Então, andamos para trás, rumo ao século XIX, e a conta do consumo urbano é paga pela agricultura, pecuária e mineração. É isso que o Brasil virou.
O nosso tema prioritário agora deveria ser a qualificação da nossa produção, do nosso aparato produtivo e da nossa gente. Para isso, um projeto produtivista e capacitador que enfrente os desafios do novo dilema de desenvolvimento. A vanguarda produtiva anterior, que era a indústria convencional, está desaparecendo em todo o mundo. No Brasil, muito rapidamente. A próxima vanguarda é a economia do conhecimento. Mas essa nova vanguarda produtiva, onde existe no mundo, existe apenas na forma de um conjunto de ilhas excludentes, que excluem a grande maioria dos trabalhadores e das empresas. O caminho anterior se fechou, a alternativa que seria uma forma inclusiva da economia do conhecimento parece inacessível. Esse é o dilema que precisa ser resolvido, e só pode ser resolvido transformando a tarefa aparentemente inacessível de organizar uma economia inclusiva do conhecimento em algo factível, desdobrando-a em partes e etapas.
Para isso, teríamos que resgatar os instrumentos corporativistas de Vargas, como o Sebrae, o Senai, o Senac, os bancos públicos de desenvolvimento e a Embrapa, e usá-los para começar a qualificar, de um lado, as pequenas e médias empresas heterogêneas e, de outro lado, a massa de agentes econômicos individualizados, os informais, os precarizados, que perderam o vínculo com a empresa, começando a dar os primeiros passos rumo ao vanguardismo da economia do conhecimento. Esse projeto só toca o chão da realidade quando traduzido em iniciativas apropriadas para cada uma das grandes regiões do país, a política regional. Na Amazônia é uma coisa, no Brasil Central, no Centro-Oeste, é outra. Essa deveria ser a nossa tarefa. Para qualificar a produção, temos que produzir uma revolução na educação brasileira, romper com o decoreba, o enciclopedismo raso, e instituir um ensino além dessa tarefa. A matéria-prima para isso já existe, é a multidão de emergentes, muitos deles evangélicos, que não querem subsídios ou favores, querem oportunidades, querem empoderamento. O grande projeto do país seria empoderá-los.
E olhando a conjuntura do país atualmente, você vê caminhos para isso? Você vê que estamos caminhando para isso atualmente?
Eu acho que há uma falsa polarização política. Falsa porque os dois lados têm o mesmo projeto: juntar o financismo com o pobrismo e, na verdade, recorrer ao setor primário para financiar o consumo. Onde divergem é no simbólico, na política dos costumes, na política identitária. É uma falsa divergência, a política identitária é usada para desviar o foco dos nossos problemas estruturais.
A eleição municipal seria uma oportunidade para dar o primeiro passo na superação desse dilema. Eu temo que não dê, porque ninguém no país está ainda representando esses movimentos necessários, produtivistas e capacitadores. Portanto, temos que formar um movimento no país para abraçar essa causa.
E quais você acha que serão as principais tônicas dessa eleição? Quais você acha que serão os principais pontos a serem debatidos?
Veja, por exemplo, o problema da criminalidade, da violência nas grandes cidades. Não é só o crime organizado, que é um fenômeno da omissão e da fraqueza do Estado. É também, sobretudo, o crime comum, porém violento, que é um fenômeno da desorganização da sociedade. Inspirar a organização social na base, para que as pessoas se sintam responsáveis umas pelas outras e vejam o que acontece ao lado delas. Qualquer coisa que apontasse nessa direção já seria um grande avanço.
E olhando o atual momento das eleições, com o PL das fake news sendo bastante discutido, como você acha que ele pode impactar as eleições deste ano e a próxima para presidente também?
Não sei como uma lei específica vai impactar ou não. O que eu sei é que precisamos informar o povo. A política brasileira agora é uma luta num quarto escuro. Temos que acender as luzes, temos que dar ao povo acesso à informação, à educação, iluminar essa condição básica. A tarefa do Judiciário deveria ser resguardar o espaço do debate cívico e não impor ao país agendas eleitorais, armar cenários e desarmar cenários, como faz agora.
Precisamos de uma educação completamente diferente, uma educação capacitadora que prefira o aprofundamento seletivo à superficialidade enciclopédica, que valorize o trabalho em equipe em vez da justaposição do individualismo e autoritarismo na sala de aula. Libertar a genialidade submersa no povo brasileiro, dar voz e instrumentos. E, na economia, empoderar.
A longo prazo, um país como o nosso deve usar a tecnologia e o avanço tecnológico não para substituir a força de trabalho, mas para empoderar. A tecnologia marca o limite entre aquilo que já aprendemos a repetir e o que ainda não aprendemos a repetir. Tudo o que aprendemos a repetir, expressamos em uma fórmula ou algoritmo e encarnamos o algoritmo em uma máquina. O propósito da máquina é fazer por nós o que já sabemos repetir, para que possamos reservar nosso recurso supremo, o tempo, para o que ainda não pode ser repetido. Essa parceria entre a tecnologia sem imaginação e o homem com imaginação é muito mais poderosa do que a tecnologia ou o homem sozinhos. Essa deveria ser a nossa vocação. E, nessa base, organizar um modelo de desenvolvimento que una a inteligência com a natureza, em vez de persistir no divórcio entre a inteligência e a natureza.