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Disputas

A cultura latino-americana de não resolver litígios contratuais no dia a dia, tentando preservar a “boa” relação.

Artigo por Eng. Geovane Mendes Martins, Eng. Guilherme Luis Silva Campos e Eng. Luciano Alves, da Hect Consultoria

Introdução:

O aspecto cultural pode muitas vezes ser subestimado quando se pensa nos fatores mais relevantes para entender e se preparar para uma boa relação comercial a ser mantida com uma das Partes em um contrato. Entretanto, é um erro não reconhecer a relevância que a cultura tem na condução de um contrato de construção, afinal, negócios são geridos por pessoas. Na cultura Latino-Americana, por exemplo, é bastante comum que as partes posterguem ao máximo as discussões de temas mais conflituosos, que envolvam impactos de preço e de prazo, para os estágios mais avançados do Contrato, quando os “estouros” atingem somas consideráveis e muitas vezes são irreversíveis. Este comportamento, de evitar o conflito em benefício de manter uma boa relação, está arraigado na cultura do sul-americano e pode ser atribuído à forma como se deu a colonização neste continente. Deste modo, faz-se essencial entender a cultura dos povos com quem se faz negócios, reconhecendo suas características e particularidades, de modo a antever comportamentos e procurar se preparar melhor para conduzir situações consideradas “normais”, visando, no papel do gerente ou administrador contratual, posicionar-se de forma profissional e conduzir os empreendimentos ao êxito.

Contexto histórico:

Um fator cultural que une os povos nascidos na américa latina está na forma como ocorreu a colonização dos países desta região. Diferentemente do que ocorreu nos países da América do Norte, Estados Unidos e Canadá, em que prevaleceu a colonização de povoamento, na América Latina a colonização predominante foi a de exploração. Neste modelo, as colônias tinham como objetivo principal transferir seus recursos, em sua maior parte naturais, para as potências da época, Portugal e Espanha. Neste contexto, em que as principais riquezas eram provenientes da exploração da terra, e onde as terras eram distribuídas pelo Estado, o “empresário” de sucesso da época (latifundiário), era aquele que mantinha boas relações com a Corte. Esse ambiente de negócios, iniciado desde o período colonial, deu origem a uma classe de empresários que dá grande ênfase ao relacionamento com as camadas mais influentes da sociedade com o objetivo de obter vantagens competitivas.

O trecho do texto publicado pelo Prof. Paulo Roberto Feldmann, intitulado de “A influência da cultura na gestão das empresas latino-americanos” é especialmente esclarecedor:

Misturar negócios com amizade é algo comum na América Latina. O contrato às vezes não é tão importante quanto a palavra empenhada. Enquanto nos Estados Unidos existe o culto ao advogado, sendo tudo enfocado nos contratos, na América Latina existe o culto da “personalidade”, ou seja, tudo depende de com quem você estiver negociando. Assim, na América Latina, o contrato não tem o mesmo significado que nos Estados Unidos. Aliás, em geral, para os latino-americanos, os relacionamentos pessoais são de extrema importância. De acordo com Hickson & Pugh (1995, p.83-4), ao contrário dos norte-americanos, os latino-americanos têm uma visão negativa da competição individual, mas dão uma enorme importância aos grupos sociais de que fazem parte. Há uma frase corrente que diz que os norte-americanos fazem negócios e depois, se possível, amigos; enquanto os latino-americanos primeiro verificam se são amigos para depois irem aos negócios.

Reconhecer esse importante traço da personalidade do latino-americano proveniente das nossas raízes culturais, irá nos ajudar a refletir sobre as adversidades que esse comportamento pode introduzir aos projetos de engenharia que são desenvolvidos no território sul-americano.

Contexto Latino-Americano:

Grandes projetos foram construídos em passado recente na América Latina, todavia, uma parcela importante não foi exitosa, ou seja, houve importantes desvios em relação ao planejado, em especial no que se refere aos requisitos de custo e prazo. Em outros casos as obras sequer foram concluídas. No Brasil, por exemplo, ainda em 2022, estão em andamento obras de mobilidade urbana e saneamento que estavam vinculadas com a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

A esse cenário pode-se atribuir vários fatores, alguns de caráter técnico, como a falta de informações necessárias de engenharia e projetos conduzidos por engenheiros sem conhecimentos de gestão. Outros, porém, têm como origem questões culturais, como a ausência de definições claras em contrato sobre como resolver os desvios (por medo de se incentivar conflitos), e a aversão, especialmente dos contratantes, de se negociar e pagar pleitos.

Entre os hábitos que possuem aspecto cultural, vale a pena mencionar outro: os problemas que surgem não são discutidos e tratados no dia a dia. Os eventos negativos ao desenvolvimento da obra têm sua discussão postergada, com a justificativa de que se estaria privilegiando a boa relação entre as Partes.

Entre as desculpas para não se buscar soluções imediatas e contemporâneas aos acontecimentos que impactam o Contrato, figura-se a visão de que a parte que “reclama” também pode ter falhas, como por exemplo, não mobilizou os recursos de produção prometidos ao contratante. Assim, o registro de uma falha de outra parte, poderia incitar a cobrança em relação a sua própria ineficiência. Em vista disso, é importante ter clareza de que uma falha não anula a outra, pelo contrário, se soma. Esperar que sua falha seja resolvida, para, somente então, notificar e solicitar a correção do desvio da outra parte, é aumentar exponencialmente os prejuízos e custos adicionais em um contrato. Retardar a solução de desvios e controvérsias, em prol da relação amistosa, pode, na verdade, desprivilegiar o contrato, colocando em risco os interesses das Partes e os resultados do empreendimento.

Enfrentar os problemas do dia a dia, por meio do diálogo e com o uso de ferramentas de gestão, visando resolver as questões na medida em que elas surgem, são práticas vitais para o sucesso dos projetos. E, para lograrmos êxito nesta mudança do paradigma comportamental, o conhecimento técnico, a competência profissional e a adoção de boas práticas de administração contratual se apresentam como aliados de primeira ordem.

Administração Contratual:

A administração contratual é a área da engenharia que tem como um de seus principais objetivos acompanhar a execução do contrato visando verificar a aderência, ou apontar eventuais desvios, no cumprimento dos critérios estabelecidos pelas partes (contratada e contratante), especialmente no tocante aos indicadores de preço, prazo, escopo e qualidade.

Há um ditado conhecido na indústria da construção de que há três certezas na vida, o pagamento de impostos, a morte e os claims. Assim, em empreendimentos complexos, como é o caso de projetos de engenharia, é sabido que ocorrerão mudanças, e que estas poderão impactar o projeto em termos de preço e prazo, sendo que, na maioria das vezes, ambos parâmetros serão afetados.

No entanto, ao postergar a solução contemporânea dos eventos negativos promove-se a intensificação destes, impregnando danos ao contrato. Deve-se considerar a discussão sobre um determinado acontecimento, com o objetivo de corrigir eventual descumprimento de maneira atempada, incentivando que a contraparte atue e resolva o problema o quanto antes (e elimine ou reduza um possível custo adicional). Às vezes, estes acontecimentos e suas consequências econômicas sequer eram vistos pela outra parte.

A administração contratual nos oferece ferramentas para que os eventos que impactam as obras sejam mapeados e registrados. A preparação de registros adequados é atividade primordial nesse processo, sendo que estes devem ser (i) elaborados o mais próximo da ocorrência dos eventos; (ii) produzidos por pessoa que tenha conhecimento do evento (e seus impactos); (iii) ser uma prática regular no Contrato; e (iv) ser suficientemente detalhados. Os documentos mais utilizados são os Diários de Obras; Atas de Reunião; Cartas; E-mails e documentos de planejamento (relatórios semanais ou mensais; cronogramas de progresso).

De posse de uma base consistente de informação, devidamente suportada por documentos, os gestores e tomadores de decisão, poderão enfrentar as questões que afetam o Contrato a partir de um prisma objetivo, reduzindo a subjetividade e as percepções individuais de cada um, buscando construir, por meio de análises e exercícios calcados em boas práticas de engenharia de custos, soluções equilibradas para as Partes e que visem o melhor para o Projeto.

Conclusão:

Culturalmente, os Latino-Americanos têm dificuldade de resolverem no dia a dia questões conflituosas privilegiando o bom relacionamento e evitando discussões com seus parceiros de negócio. Esta conduta, porém, apenas adia o momento em que os problemas precisarão ser enfrentados, tornando-os maiores e impedindo que, caso estes viessem à mesa no ato em que surgiram, pudessem ter sido tomadas ações mitigatórias. Diante desta situação, o melhor remédio reside no estabelecimento de uma postura madura e profissional, pautada por uma comunicação clara e objetiva, devidamente suportada por documentos de gestão contratual e análises realizadas a partir de metodologias reconhecidas. A adoção dessa nova postura irá aumentar as chances de sucesso dos empreendimentos, no atingimento das metas traçadas, bem como contribuir para a redução do número de disputas.