Todos conhecemos a impressão popular de que “rico não vai para a cadeia” ou de que “empresário sempre fica impune”. Essas ideias decorrem do histórico de baixa efetividade e da seletividade que marcaram o sistema criminal desde o início do séc. XIX e até as últimas décadas do séc. XX, especialmente na América Latina. De fato, até pouco tempo atrás as classes mais favorecidas financeiramente gozavam de certa imunidade na seara criminal.
Contudo, os tempos mudaram. A partir dos anos 1990, mercê de pesquisas críticas que denunciaram esse cenário de privilégios injustos, a situação começou a se alterar e, hoje, todos os dias vemos empresários e pessoas ricas sendo processadas e condenadas, bem algo de medidas cautelares de busca e apreensão, de quebra de sigilo e de prisão. Trata-se, certamente, de relevante avanço social se pretendemos ter um sistema criminal minimamente igualitário.
Entretanto, talvez com o objetivo de compensar o longo período de impunidade, setores da sociedade civil e do Estado alheios a essa mudança da realidade seguem ainda cultivando uma ideologia (agora defasada) e veem os empresários e os ricos como inimigos a serem combatidos. Esse pensamento produz excessos punitivos que, contrariando o desejo de justiça desses segmentos, acaba por gerar injustiças.
Artigo especializado intitulado “Empresa forte, país forte” aponta que “é o setor privado, e não o governo, o motor da prosperidade”. A pesquisa mostra que, já há mais de 10 anos, as pequenas, médias e grandes empresas empregavam mais de 30 milhões de brasileiros, quatro vezes mais do que empregava o setor público, incluindo as estatais. Menciona-se, ainda, que 2 de cada 3 reais da riqueza produzida no Brasil são gerados no setor privado, e que 2/3 (dois terços) do total de salários do Brasil advém da atividade empresarial.[1] Esses dados são de 2010, mas estatísticas atuais consolidam a importância da classe empresarial para a economia: hoje são quase 40 milhões de carteiras de trabalho assinadas no âmbito privado[2], contra cerca de 12 milhões no público[3].
São indicadores objetivos que contornam a discussão filosófico-política envolvendo os pensamentos capitalista e socialista. A atividade econômica organizada e exercida por particulares e a economia de mercado, apesar dos problemas inerentes, como a desigualdade de distribuição de renda, p.ex., continuam gerando benefícios fundamentais ao funcionamento da sociedade, que superam os malefícios.
Para Amartya Sen[4], vencedor do Prêmio Nobel de economia e professor da Universidade de Harvard, “mesmo que a operação de uma economia de mercado específica seja significativamente defeituosa, não há como abrir mão da instituição dos mercados de modo geral como poderoso motor do progresso econômico.” Citando Manoel Pereira Calças, o Ministro Ricardo Lewandowski, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.934-2, asseverou: “na medida em que a empresa tem relevante função social, já que gera riqueza econômica, cria empregos e rendas e, desta forma, contribui para o crescimento e desenvolvimento socioeconômico do país, deve ser preservada sempre que for possível.”[5]
Sim, a classe empresária deve perseguir função social. Ela responde por sua responsabilidade comunitária e ambiental e por uma gestão ética e deve resguardar os direitos sociais daqueles que para ela trabalham. A empresa está obrigada a buscar, além do capital, alternativas que garantam uma sociedade mais digna, justa e igualitária. É devida a fiscalização pública para que tais objetivos sejam atendidos.
Não obstante sua relevância, o empresário é visto por muitas pessoas como um caçador de lucros, um egoísta insensível às questões sociais e o ícone de um capitalismo desumano e de exclusão da grande massa da população. É, assim, o vilão da sociedade pós-industrial. Semelhantes são as observações de Emerson Castello Branco Simenes[6]: “no Brasil, ser empresário é quase sinônimo de ser vilão. Se um empresário ganhar dinheiro, então é um explorador. Se o mercado entra em crise e há a necessidade de dispensa de funcionários, o empresário passa a ser tido na conta praticamente de um bandido”.
Esse pensamento anti-corporações se manifesta também no meio jurídico. Fabio Tokars[7] nota que “um preconceito comum entre os aplicadores do direito é imaginar o empresário como alguém que merece uma tutela jurídica mais rigorosa do que outras categorias. Sendo o agente mais visível de uma estrutura capitalista que carrega o peso da culpa pelas mazelas sociais, o empresário tende a ser considerado o vilão da história. De qualquer história.” No âmbito das ciências criminais, a criação desse vilão social lembra o famigerado direito penal do inimigo, preconizado pelo jurista alemão Günther Jakobs, que nada mais é do que uma nova roupagem do tão combatido direito penal do autor, no qual a punição é baseada no agente do crime, e não na sua conduta. Essa situação acarreta uma série de repercussões negativas a todos os cidadãos, tais como a proliferação de tipos penais, o aumento desproporcional de penas, a criação de crimes de perigo abstrato e a supressão de garantias.
Nas últimas décadas, proliferaram leis relativas ao Direito Penal Econômico. Como observa René Dotti[8], “são inúmeras as leis especiais que a todo momento estão sendo impostas desordenadamente no mercado jurídico que trata dos delitos e das penas, tornando antiga e nostálgica a sensação de que o mundo dos códigos foi o mundo da segurança”. No Brasil, p.ex., há as leis 7.492/86 (crimes contra o Sistema Financeiro Nacional); 8.078/90 (crimes contra o consumidor); 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária); 8.176/90 (crimes contra a ordem econômica); 9.605/98 (crimes ambientais); 9.613/98 (crime de lavagem de dinheiro), 9.983/2000 (delitos previdenciários); 11.101/2005 (crimes falimentares); 14.133/2021 (crimes de licitação) e muitas outras mais recentes. Se somados, são dezenas de tipos penais, dirigidos basicamente aos empresários.
Os novos tipos penais dirigidos ao “vilão empresário” apresentam penas manifestamente desproporcionais em comparação com crimes que não são white collar. Por exemplo, no Brasil, sonegar tributos (art. 1º da Lei 8.137/90 – reclusão, de 2 a 5 anos), é mais reprovável que produzir lesões corporais de natureza grave em outrem (CP, art. 129, §1º). Gerir temerariamente instituição financeira (art. 4º, parágrafo único da Lei 7.492/86 – reclusão, de 2 a 8 anos) é mais gravoso que cometer crimes como homicídio culposo (CP, art. 121, §3º), furto (CP, art. 155) e estelionato (CP, art. 171). A pena máxima do delito de gestão fraudulenta (art. 4º da Lei 7.492/86 – reclusão, de 3 a 12 anos) é superior ao teto do apenamento do estupro (CP, art. 213). O mesmo raciocínio foi utilizado para a pena de multa. Nos crimes empresariais, o valor da multa pode ser decuplicado, conforme as previsões dos arts. 8 da Lei 8.137/90 e 33 da Lei 7.492/86.
A quase totalidade de delitos econômicos são de perigo abstrato. Basta notar, por exemplo, os tipos penais constantes na Lei 7.492/86, relativas aos chamados crimes do colarinho branco. Os delitos de gestão fraudulenta (art. 4º), gestão temerária (art. 4º, parágrafo único), evasão de divisas (art. 22), manutenção de divisas no exterior (art. 22, parágrafo único), dentre outros, que presumem a probabilidade de dano ao sistema financeiro nacional, sem cogitar do efetivo prejuízo a ele. O mesmo ocorre com inúmeros outros textos normativos, como, p.ex., a Lei 9.605/98, que prevê os crimes ambientais. A conduta de extrair recurso mineral sem licença ou autorização (art. 55) já é suficiente para a intervenção penal, diante da probabilidade – presumida – de dano ao meio ambiente.
Muitos dos acusados por white collar crimes no Brasil sofrem da mesma apreensão que o personagem de O processo (Kafka). São aqueles que têm contra si acusações por delitos de apenamentos altíssimos, mas sequer sabem a razão pela qual são denunciados já que, muitas vezes, seu “crime” é figurar em um ato constitutivo de determinada pessoa jurídica ou ser gerente de uma instituição financeira. Parte considerável da doutrina e da jurisprudência admite a acusação genérica na persecução penal de tais crimes, entendendo pela desnecessidade de individualização das condutas dos autores ou partícipes do fato supostamente criminoso.
Ao comentar a política pública de Hugo Chavez na Venezuela, Mario Vargas Llosa foi contundente: “satanizar o empresário privado é política suicida.”[9] Qualquer generalização é perigosa. Certamente existem empresários nocivos à sociedade, com pensamento egoístico e irresponsável. Contudo, a grande maioria trabalha de forma honesta e ética, fazendo valer a função social que se espera das empresas, as quais, é bom lembrar, são as verdadeiras locomotivas que movem qualquer país.
Ademais, a boa-fé objetiva deve valer também para o empresário. Se a maioria dos empresários fosse desonesta, a sociedade não se desenvolveria da forma com que vem se desenvolvendo. Haveria um incontável número de processos judiciais. E não é o que ocorre: basta comparar o número de contratos comerciais e de empregos gerados com o número de demandas judiciais sobre ele. Esquece-se, inclusive, dos grandes riscos de derrocada financeira e pessoal que corre aquele que se aventura na atividade empresarial, seja quando da abertura de uma empresa ou de sua expansão. Não obstante a necessidade de se evitar a impunidade de tais pessoas, não se pode chegar ao extremo de os vilanizar, inclusive diante de sua importância socioeconômica.
[1] Empresa forte, país forte. Revista Exame. São Paulo, ed. 979, p. 32-47, 3 nov. 2010.
[2] Emprego com carteira no setor privado aumenta em 620 mil vagas em um trimestre, mostra IBGE, Estadão, 30/11/2023. Em https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2023/11/30/emprego-com-carteira-no-setor-privado-aumenta-em-620-mil-vagas-em-um-trimestre-mostra-ibge.htm, acesso em 31/1/2024.
[3] Emprego no setor público tem alta de 2,8% no trimestre, Correio Braziliense, 30/06/2023. Em https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2023/06/5105727-emprego-no-setor-publico-tem-alta-de-28-no-trimestre.html, acesso em 31/01/2024.
[4] SEN, Amartya. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 27.
[5] STF – ADI 3.934/DF – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – DJ 06.11.2009
[6] SIMENES, Emerson Castello Branco. Uma distorção da realidade econômica. Disponível em www.padariamoderna.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=872. Acesso em 01 dez. 2010.
[7] TOKARS. Fabio. Quem é o empresário brasileiro? Disponível em http://www.parana-online.com.br/colunistas/277/53183. Acesso em 01 dez. 2010.
[8] DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 245.
[9] PORTAL TERRA. Disponível em http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI3792633-EI8140,00-Em+Caracas+Llosa+diz+que+Venezuela+caminha+para+ditadura.htm. Acesso em 01 dez. 2010.