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Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados

Abuso na interpretação do direito

O artigo desta semana tem autoria da colunista Teresa Arruda Alvim, sócia do Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados

Vamos começar pelo começo.

Como se sabe, no final do século XVIII, ao juiz era proibido interpretar. Era o juiz “boca da lei”, que aplicava o texto do dispositivo legal à situação concreta. Ainda se fala em silogismo, para definir a estrutura fundamental da sentença.

Quando se começou a falar em interpretação, por volta do final do século XIX se entendia que o intérprete deveria buscar a intenção do legislador. Num segundo momento, passou-se a entender que o que deveria ser procurado era o verdadeiro sentido do texto legal. Um único e verdadeiro sentido do texto da lei.

Hoje, vivemos um momento histórico em que os autores insistem, inclusive eu, em dizer que o poder judiciário participa ativamente da construção do próprio direito. O direito positivo já não é mais capaz, por si só, de açambarcar a totalidade da realidade social; das leis, muito frequentemente, constam conceitos vagos e cláusulas gerais; os princípios jurídicos têm se tornado cada vez mais importantes: portanto, a atividade interpretativa do juiz ocupa um espaço cada vez mais amplo na formulação das decisões dos conflitos. A solução destes conflitos, – muitas vezes consubstanciada em precedentes vinculantes – deve orientar as decisões dos demais órgãos do poder judiciário principalmente quando emanadas dos tribunais superiores.

Se tivéssemos que, grosseiramente, descrever o que é decidir, diríamos que é, no mais das vezes, dar uma solução ao conflito, à luz do direito.

Portanto, fundamentar é justificar o acerto da decisão, porque está de acordo com os fatos da causa e com o direito.

Com isso, entretanto, como dissemos, não se quer dizer que o decisum da sentença seja logicamente dedutível das premissas que o precedem,[1] como a única solução possível, mas que a ele se possa chegar através de meios racionais, isto é, que o decisum seja acessível por meio da razão.[2]

Que a sentença não é um silogismo vem sendo reconhecido há décadas pela doutrina brasileira mais vanguardista.[3]

Este pensamento iluminista, além de conceber o ordenamento jurídico como sendo capaz de fornecer ao juiz a solução do caso particular – tornando a sentença puramente declaratória de um direito anteriormente constituído – pressupõe também, na figura do julgador alguém que, milagrosamente, se tenha desligado da tradição, de seus vínculos sociais e valores, transformado, como diz Villey, num ‘técnico sem princípios’”.

A forma silogística pode ser, isto sim, adotada para a redação, para a formalização da decisão, para facilitar a sua compreensão, o que não significa que o iter percorrido para se chegar à decisão tenha sido lógico.[4]

O silogismo é a roupa mais confortável que a sentença pode vestir: é a sua forma final, concebida para convencer o público a que se destina que ela não poderia ser outra. É apenas nessa medida que a sentença pode ser entendida como um silogismo.

As decisões judiciais, muito frequentemente, portanto, não decorrem automaticamente do sistema. Falar-se da decisão como um silogismo dá a falsa ideia e a confortável sensação de que os dados estão prontos: o direito está aí; os fatos são apresentados pelas partes. Basta, portanto, pôr esses elementos em ordem que, automaticamente, surgirá a inexorável conclusão, em forma de decisum: a solução da controvérsia.

Os fatos, entretanto, não são um dado “pronto” – o juiz os seleciona e eles são reconstruídos por meio das provas.[5]

Também o direito é, em uma certa dimensão, reconstruído pelo juiz, por meio da interpretação dos textos: lei, doutrina e jurisprudência.

A necessidade de que haja uma reconstrução normativa decorre da verificação de que o direito a ser aplicado, na solução do problema apresentado ao juiz, também não é um dado pronto. É necessário que o juiz encontre a norma e a interprete, já que toda norma, seja ela um texto de lei, ou um precedente, ou, ainda, uma tese, daquelas fixadas, por exemplo, em recursos repetitivos, é expressa por meio de um texto que deve ser compreendido, portanto, em certa medida, interpretado.[6]

Claro que a complexidade dessa reconstrução pode variar intensamente de caso a caso, e isso depende de diversos fatores, por exemplo, o grau de vagueza das expressões utilizadas no texto normativo aplicável.

É evidente que para que o juiz encontre a norma é, antes, imprescindível que examine os fatos. Estes serão qualificados juridicamente, i.e., “etiquetados” à luz do direito. Por isso é que, para nós, a decisão é fruto de um movimento pendular que se dá entre fatos e ordenamento jurídico.

Esse movimento, em nossa opinião, começa nos fatos e, de lá, inclina-se em direção ao direito; depois, volta-se para os fatos, e assim por diante.

Entretanto, os fatos são examinados, desde o início, já à luz do ordenamento jurídico, como pano de fundo. Os fatos são objeto de um olhar que tenta, ao mesmo tempo, compreendê-los em si mesmos e qualificá-los juridicamente.

Na frase lapidar de Daisson Flach: “Um caso a decidir não pode ser compreendido juridicamente senão em referência à norma e a norma em referência ao caso”.[7]

Então, os processos de reconstrução do direito e de reconstrução dos fatos ocorrem quase que simultaneamente, nesse movimento pendular, que pode desembocar em várias possíveis soluções normativas.

Por uma entre as várias soluções normativas, que podem surgir porque as palavras podem ser equívocas e porque os fatos podem ser compreendidos de diversos modos, o juiz haverá de optar.

Quando o juiz examina o fato da locação, do casamento, do inadimplemento, já o faz sob a perspectiva do ordenamento jurídico, pois os fatos já estão, como afirmamos há pouco, “etiquetados”.

Claro que pode haver dúvidas sobre como “etiquetar” – aí começa a reconstrução.

Mas o emprego da palavra reconstrução tem um sentido e uma finalidade bem clara: não se pode perder de vista que já há uma construção, feita pelo legislador, e o trabalho do juiz é dar-lhe continuidade: ele não “joga fora” o que já está feito.

Por isso, é de especial relevância frisar-se que há um texto e que a reconstrução do direito há de ser feita a partir dele. Obviamente há pelo menos um embrião de significado que deve ser “trabalhado” pelo juiz. Ele não parte de um nada.

Portanto, a interpretação do texto normativo não pode resultar em qualquer sentido.[8]

Os limites com que contam os resultados das interpretações estão nos significados incorporados ao uso linguístico comum dos termos usados pelo legislador. Muitas vezes, nossos Tribunais vão “longe demais”, desprezando integralmente o texto interpretado: construindo e não reconstruindo. E isso, a nosso ver, é inadmissível.[9]

A tarefa de reconstrução do direito deve-se dar, necessariamente, a partir da interpretação dos textos normativos.

Mas não se deve esquecer que o dia a dia dos magistrados está repleto de casos simples, aos quais os dispositivos legais se aplicam, sem que este mecanismo gere grandes dificuldades.[10] Nestes casos o Judiciário não precisa e não deve “criar”, e nem se afastar da literalidade dos textos de lei.

Essas observações dizem respeito, apenas àqueles casos mais complexos, os casos difíceis (hard cases): são aqueles a que a lei não se refere de forma expressa, que envolvem a necessidade de ponderação de valores etc.

Quando o texto é inteiramente desprezado, deixado de lado, porque se faz uma interpretação inadmissivelmente distante do sentido de suas palavras, o que há, de rigor, é uma traição. O direito é traído porque se abusa do direito/dever de interpretar. Sabota-se o sistema de produção de normas: texto + interpretação – já que o primeiro elemento é vilipendiado.

A noção de abuso aparece muito frequente nos livros jurídicos de nossa época. Fala-se em abuso do direito de ação, do direito de recorrer… porque não se admitir a figura do abuso do direito/dever de interpretar, por parte do juiz? O abuso do direito de interpretar leva a “criações” ilegítimas de regras jurídicas, a que se terá chegado por um processo pseudo interpretativo.

Distorcido o sentido da atividade do Judiciário, desrespeitado o legislativo, torpedeado o Estado de Direito: os dois poderes devem, serena e discretamente, contribuir para a versão final da norma que o jurisdicionado há de respeitar, sem protagonismo exacerbado, sem o intuito de estar na primeira página dos jornais.

 

 

 

[1] Como ensina Tucci: “Trata-se, como é notório, de labor intelectivo, em princípio, ‘e no qual se consubstancia a estrutura lógica do importante ato decisório’.

Todavia, ao decidir uma causa, o juiz jamais poderá apegar-se a regras exclusivamente lógicas, mas, ao revés, deverá ter conhecimento da prevalência de seu juízo crítico na busca da verdade, para fazer realizar, plenamente, a justiça.

Com efeito, o ato decisório de mérito é de ser considerado como uma operação complexa, integrada por questionamentos de ordem racional, histórica e crítica que se entrecruzam nas sucessivas etapas de sua elaboração.

Assim sendo, a sentença não pode encerrar-se no esquema do silogismo lógico clássico, que alçava a norma jurídica aplicável ao caso examinado como premissa maior e as quaestiones facti como premissa menor para chegar-se à conclusão resultante do ato decisório de mérito”. (TUCCI, José Rogério Cruz e. A motivação da sentença no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 8-9).

[2] José Augusto Delgado observa que o dever de o juiz motivar as decisões, hoje constante do texto da CF (art. 93, IX e X), do CPC (arts. 489, 490 e 491) e do CPP (art. 381), não se confunde com a necessidade de que esta motivação obedeça a rigor silogístico. (A sentença judicial e a CF de 1988. Revista de Processo, São Paulo, v. 61, p. 57-62, jan./mar. 1991).

[3] Como se vê de trecho da obra de Ovídio Baptista da Silva que merece ser transcrito: “Todavia, em franco contraste com todas as variantes do normativismo de que ainda se alimentam nossas instituições processuais há, na doutrina contemporânea, a definitiva aceitação de que a jurisprudência é fonte criadora de direito; que a lei é apenas uma referência, em cujo círculo de possibilidades o julgador haverá de construir a sentença; que, por isso, é uma crença ilusória a suposição da plenitude do ordenamento jurídico, como se contássemos com um legislador sábio, dotado de poderes sobre-humanos, para prever e prover para o futuro sobre a infinidade incalculável de casos concretos, cabendo ao juiz ‘nella serenità lunare dei solligismi’, como um ser inanimado, como pretendera Montesquieu, apenas declarar a ‘vontade da lei’”. (SILVA, Ovídio Baptista da. A função dos Tribunais Superiores. Superior Tribunal de Justiça: 10 anos: obra comemorativa 1989-1999. Brasília: STJ, 1999. p. 145-165, especialmente p. 150-151).

[4] Sempre chamou atenção a forma excessivamente simples das decisões da Corte de Cassação, redigidas como se, de fato, de um silogismo se tratasse. Entretanto, desde 1º de outubro de 2019, passou a vigor importante reforma que diz respeito à forma como se redigem as decisões deste Tribunal. Estas passaram a ser menos lacônicas, delas passou a constar referências mais claras a respeito das opções interpretativas, com o objetivo de facilitar a sua compreensão e favorecer a efetiva unidade do direito e seu progresso. (POSENATO, Naiara. A reforma do estilo das decisões judiciais da Cour de Cassation. Revista de Processo, São Paulo, v. 336, p. 433-458, fev. 2023).

[5] “No que tange à seara fática, o CPC/2015 expressamente preceitua que ‘O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento’ (art. 371). Aqui é importante relembrar que foi suprimida a expressão ‘livremente’ do permissivo legal correspondente do CPC/1973, dispositivo esse a que a doutrina denominava de livre convencimento motivado.

Em que pese a alteração legislativa revelar a intenção de ‘refutar compreensão equivocada de que os magistrados poderiam formar seu convencimento como melhor lhes aprouver’, a verdade é que o dispositivo legal nunca permitiu ao juiz decidir conforme seu bel prazer, escolhendo ao acaso as provas e argumentos para tomar sua decisão. O que se permitia – e se permite – é a valoração das provas com base na persuasão racional, atribuindo, de maneira fundamentada, o valor que cada prova merece dentro do contexto probatório colhido, sem vinculá-lo, salvo raras exceções, a um sistema de prova legal”. (FAGUNDES, Cristiane Druve Tavares; ALI, Anwar Mohamad. Fundamentação das decisões judiciais segundo a jurisprudência dos tribunais pátrios. Revista de Processo, São Paulo, v. 329, p. 47-66, jul. 2022, especialmente p. 52).

[6] “A palavra, quer considerada isoladamente, quer em combinação com outra para formar a norma jurídica, ostenta apenas rigidez ilusória, exterior. É por sua natureza elástica e dúctil, varia de significação com o transcorrer do tempo e a marcha da civilização. Tem, por isso, a vantagem de traduzir as realidades jurídicas sucessivas. Possui, entretanto, os defeitos das suas qualidades; debaixo do invólucro fixo, inalterado, dissimula pensamentos diversos, infinitamente variegados e sem consistência real. Por fora, o dizer preciso; dentro, uma policromia de ideias.

Traçar um rumo nesse mar revolto; numa torrente de vocábulos descobrir um conceito; entre acepções várias e hipóteses divergentes fixar a solução definitiva, lúcida, precisa; determinar o sentido exato e a extensão da fórmula legal – é a tarefa do intérprete.’ (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 15).

[7] FLACH, Daisson. Dever de motivação das decisões judiciais na jurisdição contemporânea. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. p. 121. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/ bitstream/handle/10183/183364/000904786.pdf?sequence=1. Acesso em: 28 fev. 2023.

[8] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 53.

[9] Como observam Georges Abboud e Gilmar Ferreira Mendes: “Não foi por outra razão, enfim, que recorremos aqui à hermenêutica integrativa, que, como já tivemos a oportunidade de anotar, ‘possibilita a reconstrução hermenêutica da unidade do direito brasileiro estendendo a incidência do CPC, 489, § 1º para as demais áreas do direito’.

Bernd Rüthers de há muito ensina que o texto é fundamental para a atividade interpretativa. Simultaneamente, não há interpretação que não seja o enriquecimento do ente interpretado. Toda compreensão de texto determina uma atividade produtiva e não reprodutiva.

Há, portanto, uma circularidade entre a interpretação – que enriquece o ente interpretado – e a influência que o ente interpretado exerce sobre o intérprete. Essa circularidade deve contribuir para a solidificação da unidade do direito”. (Da monocratização à deferência ao plenário: um ensaio sobre os critérios para a concessão de medidas liminares no controle abstrato de constitucionalidade. Revista de Processo, São Paulo, v. 312, p. 8, fev. 2021, on-line).

[10] Nesse sentido, Alberto Tedoldi, em interessante artigo, observa que: “Lo stile della motivazione, nei due fondamentali momenti del ragionamento decisorio e del discorso giustificativo (context of discovery/context of decision), potrà anche variare in base alla complessità della materia del contendere, seguendo ora il metodo esplicativo e apodittico (secondo il mos gallicus della phrase unique, tradizionalmente adottato in Francia), quello propriamente sillogistico (premessa maggiore/norma, premessa minore/fatti, conclusione/effetti) o quello della spirale ermeneutica (dal fatto al diritto, in base all’ordine logico delle questioni), intessuti e contaminati con il metodo topico, che da sempre fonda il ragionamento giuridico su massime e casi ricorrenti, e con quello retorico-dialettico (dicebatur quod/ex adverso dicebatur quod; Pro-contra-solutio; moti fuimus ad ita iudicandum quia) o, infine, con quello euristico (basato su una rigorosa falsificazione epistemologica), in forma schematica, unitaria e, così alfine, sintetica e chiara”. Tradução livre: “O estilo da motivação da sentença, nos dois fundamentais momentos de raciocínio decisório e discurso justificativo (context of discovery/context of decision) pode também variar como resultado do grau de complexidade da matéria que deve ser decidida, seguindo, ora o método explicativo e apodítico (segundo o mos gallicus da frase única, tradicionalmente adotado na França) ou aquele propriamente silogístico (com a premissa maior/ lei, com a premissa menor/ fatos conclusões e efeitos) ou ainda o da espiral hermenêutica (do fato ao direto, com base na ordem lógica das questões) misturado e contaminado com o método tópico, que sempre funda o raciocínio jurídico em máximas e casos recorrentes, e com aquele retórico dialético (dicebatur quod/ex adverso dicebatur quod; Pro-contra-solutio; moti fuimus ad ita iudicandum quia) ou, ainda, com o método heurístico (que se baseia em uma rigorosa falsificação epistemológica), numa forma esquemática, unitária, e assim, enfim, sintética e clara”. (Chiarezza e sintesi tra mito e realtà. In: SIMONS, Adrian; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; RAGONE, Alvaro Pérez; LUCON, Paulo Henrique dos Santos (org.). Estudos em homenagem a Ada Pellgrini Grinover e José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 78 [livro eletrônico] – g.n.).