favicon
Coluna Davi Tangerino Advogados

Decreto-Lei n.º 3.240/41: como interpretações casuísticas construíram uma jurisprudência que pode inviabilizar a atividade empresarial

O artigo desta semana da Coluna Davi Tangerino Advogados tem autoria dos advogados Davi Tangerino, Felipe Colloca e Caio Giuranno

Em que pese já exista há mais de 80 anos, o Decreto-Lei nº 3.240/41 vem sendo invocado com frequência pelos tribunais para justificar medidas cautelares patrimoniais em procedimentos criminais que buscam sequestrar (ou bloquear) bens dos investigados. Essa tendência alcançou as Cortes Superiores, que decidem casuisticamente, sem se atentar ao impacto sistemático de seus precedentes.

O Decreto-Lei nº 3.240/41 é um terreno fértil para a antecipação de punição, uma vez que permite o sequestro de bens auferidos licitamente pelo “indiciado” (“Sequestro Especial”), desde que o crime em apuração tenha causado prejuízo à Fazenda Pública (art. 1º). O Código de Processo Penal (arts. 125 e seguintes), rememora-se, prevê apenas o sequestro de bens de proveniência ilícita, o que freia sobremaneira o apetite punitivo.

Este texto organiza grande parte dos entendimentos jurisprudenciais sobre o Decreto-Lei nº 3.240/41 e demonstra como, se levados a cabo, tais entendimentos têm o potencial de inviabilizar atividades empresariais — ao atribuírem a pessoas jurídicas que não se beneficiaram de crimes cometidos por seus colaboradores o eterno dever de “reparar” os danos causados à Fazenda Pública.

Recepção do Decreto-Lei nº 3.240/41 pela Constituição Federal de 1988

Muito embora a jurisprudência tenha se pacificado no sentido de que o Decreto-Lei nº 3.240/41 foi recepcionado pela Constituição Federal (CF), é difícil apontar um precedente paradigmático que tenha tratado dessa matéria de forma exaustiva.

A problemática se dá pelo fato de o referido Decreto-Lei conter expressões anacrônicas, como a disposição de que ele se aplicaria aos crimes definidos “no Livro II, Títulos V, VI e VII da Consolidação das Leis Penais” — seções que não estão mais em vigor, tampouco encontram correspondência evidente no atual Código Penal.

Caberia às Cortes Superiores aparar essas arestas. Não basta afirmar que o Decreto-Lei foi recepcionado pela CF; é necessário esclarecer como isso foi feito. A ausência de conjugação entre o sequestro previsto no Decreto-Lei e aquele previsto no Código de Processo Penal dá margem para soluções casuísticas por parte dos tribunais, gerando, entre outros efeitos negativos, insegurança jurídica.

A título de exemplo, o Judiciário tem interpretado amplamente os crimes que autorizam o Sequestro Especial. Conforme mencionado, o art. 1º do Decreto-Lei nº 3.240/41 menciona delitos que causam “prejuízo à Fazenda Pública” e crimes revogados da Consolidação das Leis Penais.

Nesse contexto:

  • O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que infrações contra as instituições democráticas estariam incluídas neste rol.¹

  • O Superior Tribunal de Justiça (STJ) estendeu a medida a casos envolvendo empresas públicas e sociedades de economia mista, sob o argumento da proteção ao patrimônio público.²

Além de gerar desproporção em relação a crimes que não afetam diretamente a Fazenda Pública, tais interpretações levam a situações paradoxais — como em crimes tributários, nos quais o sequestro pode incidir sobre patrimônio indispensável à existência da empresa e, consequentemente, à quitação da própria dívida tributária.

Possibilidade de empresas serem alvo do sequestro previsto no Decreto-Lei nº 3.240/41

O art. 1º do Decreto-Lei nº 3.240/41 prevê o sequestro de bens de “pessoa indiciada”, o que excluiria pessoas jurídicas, salvo em crimes ambientais. A única exceção prevista no Decreto-Lei para atingir bens de terceiros está no art. 4º, que exige a comprovação de dolo ou culpa grave na aquisição dos bens a serem apreendidos. Evidentemente, o ônus da prova recai sobre o órgão acusatório.

Para contornar essa limitação, tem-se ampliado o conceito de “pessoa indiciada” para incluir empresas, permitindo o sequestro de bens licitamente adquiridos.

Esse entendimento, inicialmente aplicado a empresas de fachada ou com ganhos decorrentes de crimes, se popularizou. Em resposta, o STJ passou a restringi-lo a casos em que a empresa tenha sido “utilizada para a prática de delitos (…), com lucro econômico provável”.³ Contudo, a definição dessa “utilização” é vaga, e a simples menção da empresa nos supostos atos criminosos tem sido suficiente para justificar o Sequestro Especial.

Prescindibilidade do perigo da demora para o Sequestro Especial

Diferentemente da maioria das medidas cautelares, o Sequestro Especial dispensa a demonstração do perigo da demora. Essa interpretação decorre do art. 3º do Decreto-Lei nº 3.240/41, que exige apenas a existência de “indícios veementes da responsabilidade”, sem mencionar risco de dano irreparável ou de difícil reparação.

É razoável interpretar que tais indícios são apenas um dos requisitos — sendo o outro, naturalmente, a possibilidade de prejuízo com a demora. Contudo, não foi esse o entendimento adotado pelo STJ⁴. O instituto, assim, se aproxima da tutela de evidência prevista no processo civil, guardadas as devidas proporções.

A problemática conjugação do sistema e sugestões de resolução

A sobreposição dos entendimentos mencionados revela um grave cenário: empresas e pessoas passam a correr o risco de ter seus patrimônios legalmente constituídos constritos, em razão de delitos cometidos por terceiros, dos quais não obtiveram benefício, e sem qualquer indício de dilapidação patrimonial.

O mais alarmante é que os valores buscados pelas autoridades podem ultrapassar os recursos disponíveis de uma empresa⁵, sendo os bloqueios frequentemente reforçados de forma sucessiva. Em investigações envolvendo prejuízos milionários à Fazenda Pública, uma empresa que teve participação colateral pode se tornar eternamente responsável pela reparação integral do dano — solidariamente aos demais investigados —, inviabilizando suas atividades econômicas.

Esse cenário pode ocorrer até mesmo quando os crimes tenham sido cometidos por ex-sócios e todos os recursos ilícitos já tenham sido eliminados do patrimônio empresarial.

A solução exige, antes de tudo, o questionamento sobre a recepção do Decreto-Lei nº 3.240/41 pela CF — e de que forma isso ocorreu. Não se nega, de plano, sua compatibilidade com o ordenamento jurídico atual, desde que haja interpretação constitucional adequada, o que não se extrai da mera literalidade do diploma legal.

É fundamental comprovar que as empresas-alvo tenham efetivamente se beneficiado dos crimes, especialmente no tocante ao lucro. A interpretação extensiva que equipara “pessoa indiciada” a pessoa jurídica já é, por si, ousada — e a restrição deve se dar a partir da aferição do efetivo favorecimento pelos atos ilícitos, no limite da participação societária do(s) sócio(s) investigado(s).

Além disso, o Sequestro Especial com vistas à reparação do dano deve observar as regras aplicáveis à fixação de valor mínimo para indenização. Caso a constrição patrimonial vise à reparação, o pedido de fixação de valor indenizatório mínimo (na denúncia e nas alegações finais, sob pena de preclusão) é condição essencial para a higidez da medida.

Texto publicado também, em 12/03/2025, no site www.jota.info. Disponível em: JOTA


Referências:

  1. STF: AP 1384 AgR, relator Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2024, DJe 29/10/2024.

  2. STJ: EDcl no AgRg no AREsp n. 1.792.372/PR, rel. Des. Conv. Jesuíno Rissato, rel. p/ acórdão Min. Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, julgado em 14/12/2021, DJe 01/02/2022.

  3. STJ: AgRg no AREsp n. 1.637.645/RJ, rel. Des. Conv. Jesuíno Rissato, 6ª Turma, julgado em 16/05/2023, DJe 19/05/2023.

  4. STJ: AgRg na CauInomCrim n. 104/DF, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Corte Especial, julgado em 06/11/2024, DJe 11/11/2024; AgRg no RMS n. 67.157/MG, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 13/12/2021, DJe 16/12/2021; AgRg no AREsp n. 2.347.443/SP, rel. Des. Conv. Jesuíno Rissato, 6ª Turma, julgado em 27/02/2024, DJe 04/03/2024.

  5. STF e STJ têm precedentes (AgR no RE 1005011/SC e AgRg no REsp n. 1.943.519/PE) no sentido de que, até a sentença, os investigados são solidariamente responsáveis pelo montante do prejuízo causado, podendo uma constrição atingir qualquer um dos investigados até o limite do prejuízo total.