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Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados

Modulação – versão brasileira, Poder Judiciário

O primeiro artigo da coluna Arruda Alvim é assinado por Teresa Arruda Alvim, sócia-fundadora do escritório

Ao escrever este título, algo me veio à memória. Aqueles que já passaram dos 50 quem sabe se lembrem dos filmes dublados que a gente via na TV. Antes de o filme começar, ouvíamos: versão brasileira Herbert Richards. Quando algo de fora vem para no Brasil, muito frequentemente nós o colorimos com as nossas tintas. Isso pode ser ótimo! …mas nem sempre é.

Ninguém nega que a modulação é instituto concebido com o objetivo de prestigiar a confiança do jurisdicionado em jurisprudência firme de um tribunal superior, esteja ou não cristalizada em precedente vinculante. Se o jurisdicionado pautou sua conduta em certa orientação, é à luz desta orientação, e não à luz da nova, que sua conduta deve ser avaliada.

É essa, e não outra, a ideia que está por trás do instituto da modulação.

A origem do instituto da modulação é o direito administrativo. Seu objetivo, desde o início, foi o de poupar os indivíduos, de não trair a sua confiança.[1] Foi gestado no contexto das preocupações com a boa-fé objetiva.

Os interessantes exemplos trazidos pelos autores dizem respeito a circunstâncias em que haveria uma grande decepção dos indivíduos, se o ato da autoridade administrativa, cuja validade estava sendo impugnada, tivesse seus efeitos cassados. Não se trata, de modo algum, de considerar que o ato não seria nulo. Separa-se, digamos, artificialmente, a validade da eficácia do ato. O ato é viciado (e isto não se põe em dúvida!), mas se devem preservar os seus efeitos, em alguma medida, porque, assim, se estará prestigiando a confiança que neles teve o jurisdicionado.

Yves Gaudemet,[2] conhecido administrativista francês, dá um excelente exemplo de um caso em que houve a conservação dos efeitos de uma decisão  de um Conselheiro do Município de Montrouge, encarregado da celebração de casamentos. Descobriu-se depois, que ele havia recebido uma delegação irregular do prefeito. (cass. 7 de agosto, 1883, S. 1884. 1.5). A irregularidade da investidura no cargo, entretanto, foi detectada apenas após a realização destes casamentos, cuja “validade” foi mantida.

O mesmo autor, clássico administrativista francês, afirma que: “não se deve distinguir, para a aplicação desta teoria, se se trata de direito público ou privado ou se o controle é exercido por juiz administrativo ou por juiz integrante do Poder Judiciário”.[3]

A preocupação quanto à necessidade de modulação dos efeitos das decisões do Judiciário é mais recente. No Brasil decorre certamente da facilidade com que nossas Cortes Superiores mudam suas orientações, às vezes como resultado apenas da mudança de composição humana que ocorre nestes Tribunais.

Modular os “efeitos” de uma decisão judicial enquanto precedente, significa inescondivelmente que se reconhece essa decisão como “jus novum”, e que, portanto, não pode produzir efeitos para aqueles que confiaram no direito que existia anteriormente!

Remo Caponi ensina que a mudança de orientação da jurisprudência consolidada que gerou confiança é ius superveniens, não retroativo.[4]

No entanto, duas ideias básicas têm inspirado os Ministros das nossas Cortes Superiores a modular os efeitos dos seus precedentes vinculantes, que nada têm que ver com a razão de ser do instituto: procura-se poupar o Estado de gastos, direcionando-se a modulação, por exemplo, para, em casos tributários, preferencialmente, beneficiar o fisco, ou ainda, procurar extrair da modulação o efeito principal de diminuir a carga de trabalho dos Tribunais Superiores.

Tem-se deixado de lado os verdadeiros objetivos do instituto da modulação, para que se alcancem estas duas outras finalidades e, o que é extremamente negativo, usualmente, as decisões sobre modulação se apoiam em argumentos exclusivamente consequencialistas.

Vejamos um exemplo: a primeira seção do Superior Tribunal de Justiça afetou, em 19.3.2024, dois recursos especiais, o REsp nº 2.066.696 e o REsp nº 2.054.759, em que se discute admissibilidade da ação rescisória para adequar decisões transitadas em julgado à modulação feita pelo Supremo da tese sobre a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.

Essa decisão[5] aconteceu em 2017 e foi no sentido de que o ICMS, como não consiste em faturamento da empresa, não deve integrar a base de cálculo do PIS e da Cofins. Trata-se de verba paga pelo consumidor para empresa, verba esta que deve ser repassada pela empresa ao Fisco. Como era de se esperar, logo depois dessa decisão, as empresas moveram muitas ações contra o Fisco, pleiteando compensação ou repetição daquilo que tinha sido indevidamente pago.

Surpreendentemente, quatro anos depois, em 2021, o próprio Supremo julgando os embargos de declaração[6], resolveu modular os efeitos daquele precedente proferido em 2017.

Ora, se a modulação é um instituto cujo objetivo e cuja razão de ser é prestigiar a confiança do jurisdicionado nos atos do Estado, é evidente que carece integralmente de racionalidade jurídica modularem-se os efeitos de uma decisão, enquanto precedente, quatro anos depois desta ter sido proferida.

A decisão sobre a modulação deve ocorrer na própria decisão em que se altera a orientação que existia anteriormente. Deve constar do próprio acórdão.

Não se pode postergar o dever relativo à manifestação acerca da modulação. Esta decisão deve ser tomada o quanto antes, e o novo precedente, sem ela, não estará completo, e de rigor, nem mesmo deveria produzir efeitos!

Quatro anos depois, ficou decidido que aquela decisão só deveria produzir efeitos a partir de 2017, ou seja, a partir do momento em que foi proferida, não tendo sido alcançadas as ações já movidas.

A partir disso, a Fazenda começou a mover ações rescisórias com objetivo de “adequar” as decisões transitadas em julgado, que favoreciam o contribuinte, ao precedente de 2017, à modulação feita em 2021.

Ora, se a modulação visa à segurança: segurança do país e segurança dos jurisdicionados, a única coisa que não pode ser resultado da modulação é a imprevisibilidade, que é exatamente o que está acontecendo. Já há rescisórias admitidas nos Tribunais Regionais Federais de várias regiões. Houve tentativas de discutir o problema no Superior Tribunal de Justiça, que se recusou a entrar no mérito, já que se trata de matéria constitucional. O Supremo Tribunal Federal, a seu turno, também já decidiu que a ofensa à Constituição Federal é reflexa e que, portanto, não tem repercussão geral, não tendo sido o tema enfrentando.

Portanto, veio em boa hora a decisão do Superior Tribunal de Justiça no sentido de decidir, de uma vez por todas, se essas rescisórias são ou não cabíveis, embora, de rigor, melhor seria se esse tema não tivesse que ser discutido.

Uma última palavra, agora sobre se  os “impactos da decisão sobre os cofres públicos” pode ser fundamento jurídico de decisões, inclusive aquelas sobre a modulação. A resposta é não.

Argumentos consequencialistas só podem ser utilizados como reforço de alguma linha dogmático-jurídica do fundamento da decisão. Ou, ainda, quando estes argumentos, em si mesmos, são redutíveis a argumentos jurídicos, normalmente principiológicos, i.e., quando o universo jurídico os “reconhece” como argumentos também jurídicos. Mas este, é claro, é tema para um outro artigo.

 

 

 

[1] O princípio da proteção da confiança vem se tornando cada vez mais relevante para o direito, porque eleva o nível do potencial de atividades humanas, contribuindo para a racionalização das escolhas, que integram a conduta dos homens, permitindo progressos de antecipação dos comportamentos futuros do alter. (Antonio do Passo Cabral, comentando pensamentos de Niklas Luhmann, Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. item 1.10.7.1, p. 162).

[2] GAUDEMET, Yves. Traité de Droit Administratif. 16. ed. Paris: LGDJ, 2001. t. 1, p. 610.

[3] GAUDEMET, Yves. Traité de Droit Administratif. 16. ed. Paris: LGDJ, 2001. t. 1, p. 610. “De même, il n’y a pas à distinguer selon que les actes en cause sont de droit privé ou de droit public et relèvent du contrôle contentieux du juge judiciaire ou du juge administratif”. (gn)

[4] “Indipendentemente dalla plausibilità del ragionamento su cui si fonda il mutamento di giurisprudenza, dimostrare che quest’ultimo – laddove concerna norme processuali – assume i tratti di uno ius superveniens irretroativo”. (CAPONI, Remo. Il mutamento di giurisprudenza costante della Corte di cassazione in materia di interpretazione di norme processuali come ius superveniens irretroattivo. Foro Italiano, v. 133, n. 11, novembre 2010, p. 311-318).

[5]RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. EXCLUSÃO DO ICMS NA BASE DE CÁLCULO DO PIS E COFINS. DEFINIÇÃO DE FATURAMENTO. APURAÇÃO ESCRITURAL DO ICMS E REGIME DE NÃO CUMULATIVIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Inviável a apuração do ICMS tomando-se cada mercadoria ou serviço e a correspondente cadeia, adota-se o sistema de apuração contábil. O montante de ICMS a recolher é apurado mês a mês, considerando-se o total de créditos decorrentes de aquisições e o total de débitos gerados nas saídas de mercadorias ou serviços: análise contábil ou escritural do ICMS. 2. A análise jurídica do princípio da não cumulatividade aplicado ao ICMS há de atentar ao disposto no art. 155, § 2º, inc. I, da Constituição da República, cumprindo-se o princípio da não cumulatividade a cada operação. 3. O regime da não cumulatividade impõe concluir, conquanto se tenha a escrituração da parcela ainda a se compensar do ICMS, não se incluir todo ele na definição de faturamento aproveitado por este Supremo Tribunal Federal. O ICMS não compõe a base de cálculo para incidência do PIS e da COFINS. 3. Se o art. 3º, § 2º, inc. I, in fine, da Lei n. 9.718/1998 excluiu da base de cálculo daquelas contribuições sociais o ICMS transferido integralmente para os Estados, deve ser enfatizado que não há como se excluir a transferência parcial decorrente do regime de não cumulatividade em determinado momento da dinâmica das operações. 4. Recurso provido para excluir o ICMS da base de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS”. (STF, RE 574706, rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. 15.3.2017, DJe 2.10.2017) (g.n.).

[6] “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. EXCLUSÃO DO ICMS DA BASE DE CÁLCULO DO PIS E CONFINS. DEFINIÇÃO CONSTITUCIONAL DE FATURAMENTO/RECEITA. PRECEDENTES. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE DO JULGADO. PRETENSÃO DE REDISCUSSÃO DA MATÉRIA. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA. MODULAÇÃO DOS EFEITOS. ALTERAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA COM EFEITOS VINCULANTES E ERGA OMNES. IMPACTOS FINANCEIROS E ADMINISTRATIVOS DA DECISÃO. MODULAÇÃO DEFERIDA DOS EFEITOS DO JULGADO, CUJA PRODUÇÃO HAVERÁ DE SE DAR DESDE 15.3.2017 – DATA DE JULGAMENTO DE MÉRITO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 574.706 E FIXADA A TESE COM REPERCUSSÃO GERAL DE QUE ‘O ICMS NAO COMPÕE A BASE DE CÁLCULO PARA FINS DE INCIDÊNCIA DO PIS E DA COFINS’-, RESSALVADAS AS AÇÕES JUDICIAIS E PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS PROTOCOLADAS ATÉ A DATA DA SESSÃO EM QUE PROFERIDO O JULGAMENTO DE MÉRITO. EMBARGOS PARCIALMENTE ACOLHIDOS”. (STF, RE 574706 ED, rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. 13.5.2021, DJe 12.08.2021) (g.n.).