Introdução
Nos últimos anos, o cenário global enfrentou situações críticas, não inéditas, mas inesperadas: a começar pela pandemia do COVID-19, com a posterior guerra deflagrada entre Rússia e Ucrânia, culminando no desencadeamento de crise no fornecimento de insumos, com o aumento dos preços de alimentos, matérias-primas, energia, commodities em geral, além das mudanças climáticas que geram impactos no adimplemento de muitos contratos.
Os reflexos jurídicos e econômicos desses acontecimentos, atrelados ao dinamismo dos negócios, impõem a todos os setores a necessidade de adaptação. Não obstante, essa dinamicidade do mercado não é suficiente para resolver os problemas enfrentados, aquecendo, por via de consequência, o mercado de solução de disputas.
Com o aumento do número de demandas, são impostos novos desafios aos operadores do direito, demandando a implementação de soluções e adaptações eficientes, principalmente no setor de arbitragem que sempre busca sua melhor performance e autorregulação. Nessa linha, pode-se listar alguns temas que se destacaram no cenário arbitral no ano de 2023, que evidenciam a franca capacidade de adaptação do instituto.
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Extensão do dever de revelação
O ano de 2023 foi marcado pela implementação de novas soluções quanto ao dever de revelação dos árbitros e seu impacto nas impugnações e nas ações anulatórias. O aumento no nível de beligerância e, ainda o oportunismo de algumas partes fez com o que mercado de arbitragem buscasse reduzir o subjetivismo relacionado ao tema, com novas métricas para os deveres dos árbitros e das partes relacionadas à revelação.
Afinal, o dever de revelação é importante mecanismo de accountability dos árbitros perante as partes, assegurando que sejam esclarecidas situações que poderiam ensejar dúvidas quanto à sua imparcialidade e independência, atributos essenciais para o exercício da tarefa adjudicatória. Enquanto o dever de independência do árbitro está vinculado a critérios objetivos, a imparcialidade está atrelada a critérios subjetivos, já que externa um state of mind do julgador. Com isso, há três deveres a serem observados.
Para balizar as revelações e tornar objetivas as hipóteses de impugnação de árbitros, o mercado brasileiro reagiu e adotou novas providências.
Dentre elas, pode-se mencionar os ajustes no Questionário de Conflitos de Interesse e Disponibilidade (Norma Complementar nº 4/2023) do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (“CAM-CCBC”), que visa aumentar o nível de transparência dos procedimentos arbitrais. A nova versão do Questionário contém perguntas sobre relacionamentos profissionais prévios entre os árbitros, os advogados e as partes nos últimos 3 (três) anos, replicando as melhores práticas do que se observa na arbitragem internacional, como por exemplo nas IBA Guidelines on Conflict of Interest in International Arbitration, além disso, as partes ficam também instadas a informar aos árbitros dados relevantes sobre a disputa e pessoas envolvidas para que estes possam responder o questionário com precisão.
A iniciativa de orientar os árbitros quanto ao cumprimento do dever de revelação também foi adotada pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem (“CBAr”), que publicou as Diretrizes sobre o Dever de Revelação do Árbitro levando em conta orientações internacionais e mundialmente aceitas sobre o tema.
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Premissas da arbitragem Societária
Com o incremento da utilização da arbitragem coletiva no Brasil, identificou-se a ausência de regras e premissas para balizar estes procedimentos, sobretudo quando se tratava de arbitragens envolvendo matéria societária. Afinal, embora a Lei das Sociedades Anônimas (Lei n. 6.404/1976) autorize o estatuto social da companhia a estabelecer que as divergências entre os acionistas e a companhia, ou entre os acionistas controladores e os minoritários, possam ser solucionados por meio de arbitragem, o texto legal não determina os contornos do procedimento arbitral – como, aliás, não deveria.
Para preencher essa lacuna, e comprovando a capacidade de autorregulação do instituto da arbitragem, o CAM-CCBC, elaborou e publicou o Regulamento de Arbitragem Societária, iniciativa pioneira que traz um novo regramento prático e específico destinado à administração e à resolução das questões observadas em procedimentos coletivos envolvendo matéria societária.
Para sua aplicação à disputa, faz-se necessário que (i) o estatuto ou contrato social da pessoa jurídica contenha cláusula compromissória, em que as partes tenham convencionado que a arbitragem será administrada pelo CAM-CCBC e sujeita ao seu Regulamento; (ii) a natureza jurídica controvertida submetida à arbitragem exija decisão uniforme para todos os afetados; e (iii) a sentença arbitral a ser proferida seja capaz de afetar não apenas as partes que integrem os polos ativo e passivo do procedimento, mas também a esfera jurídica de sociedade anônima, limitada ou associação e, simultaneamente, todos aqueles que o Regulamento denominou como Terceiros Afetados, ou seja, sócios, associados, acionistas e administradores.
Diante da crescente gama de questões societárias submetidas à arbitragem, é certo que o Regulamento de Arbitragem Societária do CAM-CCBC se mostra como um importante avanço para a questão.
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Competência para o processamento de ação de Produção Antecipada de Provas
O Código de Processo Civil Brasileiro de 2015 (“Código de Processo Civil”), ao permitir, em seu artigo 381, a produção de provas sem o preenchimento do requisito da urgência, gerou dúvida acerca da competência para processamento da referida ação, quando presente uma cláusula compromissória.
Em 2023, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) apreciou pela primeira vez a questão, entendendo que, ausente urgência, é do Tribunal Arbitral a competência para processar este tipo de demanda (Recurso Especial nº 2.023.615 – SP). Ainda que não se tenha formado jurisprudência consolidada sobre o tema, trata-se de um importante precedente para orientar os agentes do sistema arbitral.
Em vista da repercussão do tema, o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara Americana de Comércio para o Brasil (“CAM-AMCHAM”) editou e publicou uma nova resolução (Resolução Administrativa 3/2023) para estabelecer que a produção antecipada de provas obedecerá ao procedimento estabelecido para árbitros de emergência.
A despeito da iniciativa da instituição, diante da atual controvérsia sobre o tema, a sugestão ainda é no sentido de que a competência para a produção antecipada de provas – se do Poder Judiciário ou do Tribunal Arbitral/Árbitro único/Árbitro de emergência – seja definida quando da elaboração da cláusula compromissória, a fim de evitar possíveis controvérsias adicionais no momento do conflito sobre a questão.
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Posicionamento pró-arbitragem dos Tribunais sobre a competência para o processamento de ação de anulação de sentenças arbitrais.
Apesar de algumas notícias alarmistas e de cunho midiático sobre o aumento de ações anulatórias de sentença arbitral, em 2023 foi publicada pesquisa elaborada pelo CBAr e pela Associação Brasileira de Jurimetria, desbancando estes infundados ataques à arbitragem.
A pesquisa concluiu que no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, notadamente o tribunal que mais processa causas relacionadas à arbitragem no Brasil, entre os anos de 2018 e 2022, 51,2% das decisões relacionadas ao instituto foram proferidas favoravelmente à arbitragem, a exemplo das inúmeras cautelares pré-arbitrais.
A pesquisa também demonstrou que apenas 2,8% das sentenças arbitrais proferidas são questionadas perante o Poder Judiciário, sendo que a probabilidade de êxito nessas demandas é ainda mais remota, somente 1,5%.
Em conclusão, destacou-se a confiança e cooperação estabelecidas entre o Judiciário e a arbitragem e que o aumento do número de ações versando sobre o tema é mera consequência do incremento do número de casos resolvidos por arbitragem.
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Futuro
Em vista do dinamismo dos negócios, o enfoque da arbitragem no futuro próximo brasileiro não será apenas quanto às questões atinentes às disputas societárias, engenharia e construção, e relações comerciais em geral, como o foi até recentemente.
Haverá outras nuances decorrentes de novos tipos de conflitos. Dentre os highlights estarão as disputas decorrentes (i) da transição energética, uma nova realidade vivenciada em alguns países da América Latina, sobretudo no Brasil – a despeito de sua confiança na indústria de combustíveis fósseis; (ii) do acelerado avanço da tecnologia, do qual surgiram as startups e a Lei Geral de Proteção de Dados, mas que hoje ganhou novos contornos em razão da crescente utilização da inteligência artificial, não apenas no mundo dos negócios, mas também como instrumental no meio jurídico; (iii) da necessidade de implementação de políticas internas de ESG (“Environmental, Social and Governance”) pelos agentes econômicos, tanto a nível nacional como a nível global, o que tem impactos severos no cumprimento dos contratos empresariais; e (iv) dos impactos decorrentes das mudanças climáticas, que serão sentidos no desenvolvimento das relações contratuais e negociais, não só por serem uma preocupação encampada pelas novas regras de compliance, mas também por refletirem na forma e modo de cumprimento das obrigações.
Já no âmbito dos procedimentos arbitrais, acredita-se que temas como transparência e diversidade continuarão a avançar. É certo que nos últimos anos houve um movimento para a mitigação da confidencialidade da arbitragem. Se, de um lado, a confidencialidade é uma característica que merece ser preservada, dada a natureza das demandas que são levadas à arbitragem, por outro, há uma crescente demanda de acesso a informações relativas à forma de julgamento dos casos. Ainda não há um consenso sobre o tema e, por isso, acredita-se que o assunto permanecerá em pauta. A luta pela diversidade, ao contrário da transparência, é unânime. Embora tenha havido progresso, o compromisso dos agentes do mercado arbitral deve ser constante.