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Disputas

O esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho pelo Supremo Tribunal Federal

A abertura do capítulo "Large Scale Labor Litigation" possui autoria de Marcia Sanz Burmann e Maria Helena Villela Autuori, sócios do Autuori Burmann Sociedade de Advogados

Concepções distintas acerca da competência para o julgamento de causas envolvendo novas formas de contratação e divisão do trabalho (prestação de serviços por meio de aplicativos, contratos de parceria e “pejotização”), têm empolgado um verdadeiro embate institucional entre a mais alta Corte de Justiça do país e a Justiça do Trabalho.

Em razão da competência que lhe é atribuída pelo 114, I, da Constituição Federal[1], a JT vem admitindo a discussão de causas envolvendo novas formas de contratação do trabalho humano e, sempre que presentes os requisitos que o conformam (subordinação, habitualidade, pessoalidade e onerosidade), tem declarado o vínculo de emprego entre as partes, independente da terminologia empregada ao contrato, se de “prestação de serviços”, “trabalho autônomo” ou “parceria”.

A vocação da JT para o julgamento de causas envolvendo relações de trabalho[2], é resultado de uma evolução histórica que vem sendo construída e ampliada ao longo das constituições.

No entanto, essa competência tem sido paulatinamente vilipendiada por decisões recentes do STF que afastam, por completo, qualquer possibilidade de aferição, pela Justiça do Trabalho, da existência de fraude nas relações de trabalho.

Para o atual entendimento do STF, representado no voto do Min. Luíz Roberto Barroso, no julgamento da Rcl nº 61.763, existem outras formas válidas de contratação, a despeito da clássica relação de emprego disciplinada na CLT[3]:

“Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. Desse modo, são lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização)…”

Com base nesse entendimento, o STF tem afastado a competência da JT para o julgamento de causas envolvendo novas formas de contratação, com a remessa dos autos para a Justiça “comum”, responsável pelo julgamento de causas relativas a contratos cíveis e comerciais, em que, ao contrário do que ocorre no contrato de trabalho, presume-se a “paridade de armas” entre os contratantes.

É o que se retira do julgamento da Rcl nº 59795, ajuizada em face de decisão proferida pelo TRT da 2ª Região, em que foi reconhecido o vínculo de emprego entre um motorista de aplicativo e a empresa “Cabify”. A reclamação foi julgada procedente, para cassar a decisão oriunda da Justiça do Trabalho e remeter os autos à Justiça Comum, para novo julgamento.

Em outro preocupante precedente, o STF entendeu que cabe à Justiça Comum o julgamento de causas envolvendo contrato de motoristas rodoviários autônomos regidos pela lei 11.422/2007, “ainda que em discussão alegação de fraude à legislação trabalhista”, conforme segue:

(…) As relações envolvendo a incidência da Lei 11.442/2007 possuem natureza jurídica comercial, motivo pelo qual devem ser analisadas pela justiça comum, e não pela justiça do trabalho, ainda que em discussão alegação de fraude à legislação trabalhista, consubstanciada no teor dos arts. 2º e 3º da CLT.[4]

São decisões que esvaziam completamente o conteúdo normativo do artigo 114, inciso I da Constituição, que atribui a competência para o julgamento de causas dessa natureza à JT e não à Justiça Comum. Este quadro vem acompanhado de um preocupante embate institucional, decorrente de manifestações de ministros do STF, a exemplo do Min. Gilmar Mendes que, no julgamento da Rcl nº 55.769:

“(…) o órgão máximo da justiça especializada (TST) tem colocado sérios entraves a opções políticas chanceladas pelo Executivo e pelo Legislativo. Ao fim e ao cabo, a engenharia social que a Justiça do trabalho tem pretendido realizar não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção”.

Durante evento realizado em Paris, o também ministro do STF, Luís Roberto Barroso, aproveitou a ocasião para manifestar sua insatisfação com os precedentes oriundos da Justiça do trabalho:

“Nós precisamos superar o preconceito que ainda existe no Brasil contra a livre iniciativa e contra o empreendedorismo. Esse é um problema que não conseguimos superar ainda. E a história demonstrou que a iniciativa é a melhor geradora de riquezas e, portanto, ser progressista significa querer gerar o máximo de riqueza e distribui-las de uma maneira justa e adequada[5]

Para a presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, “isso tudo significa um grande abalo na Justiça do Trabalho, que tem sua competência definida pela Constituição e que possui relevante função social”[6].

A Ordem dos Advogados do Brasil, também manifestou perplexidade com as últimas decisões do STF e chama a atenção para uma preocupante “tentativa de esvaziamento da Justiça do Trabalho”[7].

Para dirimir o impasse, o Procurador-Geral da República pediu a instauração de incidente de assunção de competência, com o objetivo de uniformizar a jurisprudência acerca da competência da JT[8].

Resta-nos aguardar a solução que será dada pelo STF neste incidente. Diante da sua atual conjuntura, não nos parece que a solução seja a mais favorável à manutenção da competência histórico-material da JT, idealizada pelo constituinte.

Independentemente do resultado, urge a necessidade de uma solução sobre a questão, com a uniformização da jurisprudência, a reaproximação constitucional e a valorização da JT, órgão historicamente comprometido com o desenvolvimento nacional, mas sem perder de vistas, o equilíbrio entre os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

[1] Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

[2] Para Amauri Mascaro Nascimento, relação de trabalho, consiste no “universo de relações jurídicas ou contratos de atividade nos quais o objeto preponderante do vínculo jurídico é a atividade mesmo da pessoa que presta serviços para outra, para uma empresa ou para uma pessoa física, portanto, gênero, como, também, o que não nos parece acontecer, relação de trabalho como sinônimo de relação de emprego”. (NASCIMENTO, 2015. Pág. 25)

[3] CLT -Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto 5.452/43. Norma que regulamenta as relações de emprego em sentido estrito, no Brasil.

[4] Reclamação n. 48.944-AgR, Relatora a Ministra Rosa Weber, Redator para o acórdão o Ministro Alexandre de Moraes, Primeira Turma, DJe 10.3.2022.

[5] “BARROSO diz que é preciso superar o ‘preconceito’ contra o empreendedorismo”. Estadão, São Paulo, 13 de outubro de 2023. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/brasil/noticia/2023/10/barroso-diz-que-e-preciso-superar-o-preconceito-contra-o-empreendedorismo.ghtml. Acessado em 26/01/2024.

[6] “STF já recebeu 2.566 reclamações sobre Direito do Trabalho em 2023, diz Gilmar Mendes”. ANAMATRA, 19 de outubro de 2023. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/imprensa/anamatra-na-midia/34398-stf-ja-recebeu-2-566-reclamacoes-sobre-direito-do-trabalho-em-2023-diz-gilmar-mendes. Acessado em 26/01/2024.

[7] “OAB SP e entidades da advocacia manifestam preocupação sobre competência da Justiça do Trabalho. Jornal da Advocacia, OAB/SP, de 31 de maio de 2023. Disponível em: https://jornaldaadvocacia.oabsp.org.br/noticias/oab-sp-e-entidades-da-advocacia-manifestam-preocupacao-sobre-competencia-da-justica-do-trabalho/. Acessado em 27/01/2024

[8] “Competência da Justiça do Trabalho: PGR pede que STF uniformize uso da reclamação constitucional. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/34342-pgr-reclamacao-constitucional. Acessado em: 26/01/2024.