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Pessoas & Gestão

"O tráfico humano é o terceiro crime mais lucrativo do mundo, mas no Brasil ele segue subnotificado"

Em entrevista exclusiva, Cintia Meirelles Azevedo, especialista em Assuntos Humanitários pela The Exodus Road e vice-presidente do IAB, falou sobre a luta contra o tráfico humano, o papel dos governos e empresas na prevenção, os desafios jurídicos e o recente caso da libertação de brasileiros vítimas de tráfico humano em Mianmar

Recentemente, os brasileiros Phelipe de Moura Ferreira e Luckas Viana dos Santos foram resgatados após passarem três meses como reféns de uma máfia de golpes cibernéticos em Mianmar. Durante esse período, foram forçados a trabalhar em condições análogas à escravidão, aplicando golpes por cerca de 16 horas diárias ao lado de outros imigrantes.

A Exodus Road atuou no resgate, e, nesta entrevista exclusiva, Cintia Meirelles Azevedo, especialista em Assuntos Humanitários pela organização, comenta sobre o caso e outros temas relacionados ao tráfico humano.

Confira a entrevista na íntegra:

O que te motivou a entrar na luta contra o tráfico humano? Você sempre trabalhou nessa área ou houve um momento decisivo na sua trajetória?

O que me motivou a entrar nessa luta foi a constatação de que o tráfico de pessoas é uma das formas mais cruéis de violação dos direitos humanos. Nasci nas margens da sociedade, onde poucos enxergam e muitos são esquecidos. Essa realidade sempre moldou minha jornada, me levando a lutar por aqueles que vivem à margem, sem voz e sem proteção. O tráfico de pessoas é a expressão mais cruel dessa invisibilidade, explorando justamente aqueles que o mundo insiste em não ver. Por isso, dediquei minha vida a trazer luz para essa realidade, garantindo que vítimas desse crime não sejam apenas estatísticas, mas pessoas resgatadas, amparadas e, acima de tudo, reconhecidas.

Como é representar uma organização internacional no Brasil? Quais são os principais desafios específicos do nosso país nessa luta?

Representar uma organização internacional no Brasil é um grande desafio, mas também uma oportunidade valiosa de impactar positivamente a sociedade. O Brasil, devido à sua extensão territorial, diversidade e contextos sociais complexos, enfrenta desafios relacionados à falta de recursos adequados, à subnotificação de casos de tráfico e à dificuldade de integração entre os diferentes níveis de governo e setores. Superar essas barreiras exige um trabalho constante de articulação e sensibilização.

A Exodus Road ajudou recentemente a libertar brasileiros submetidos a tráfico humano para trabalho forçado em Mianmar. Como essa operação aconteceu e quais foram os maiores desafios nesse caso?

O maior desafio foi a complexidade da rede criminosa, que opera transnacionalmente, exigindo uma coordenação minuciosa entre diferentes países e instituições. Além disso, fatores como a geografia do local, a instabilidade geopolítica e a falta de participação do governo brasileiro tornaram a operação ainda mais desafiadora.

Luckas e Phelipe tentaram fugir, mas não conseguiram. No entanto, antes dessa tentativa, tivemos a oportunidade de participar de uma sessão no parlamento tailandês, onde, junto a outras organizações civis e representantes de países como Uzbequistão, Quênia, Etiópia e Japão, pressionamos o governo da Tailândia a tomar medidas concretas. Defendemos ações como o corte de energia e suprimentos para o complexo onde as vítimas estavam mantidas, além do reforço no controle fronteiriço com Mianmar. Durante essa reunião, apresentamos uma lista com 371 nomes de vítimas de diferentes nacionalidades, incluindo as informações de passaporte de Luckas e Phelipe, solicitando sua libertação e repatriação.

Como resultado dessas tratativas, o exército da DKBA (Democratic Karen Buddhist Army), que controlava a área onde os brasileiros estavam, informou que realizaria uma operação de resgate. A primeira tentativa ocorreu em dezembro, e a segunda, no dia 4 de fevereiro, mas ambas não chegaram até o complexo Hexin, onde Luckas e Phelipe estavam.

Diante da frustração e exaustão, Phelipe nos comunicou que ele e um grupo de 85 vítimas de mais de 50 nacionalidades tentariam fugir. Pedimos que não fugissem e que aguardassem a operação da DKBA, pois estávamos em contato direto com eles para garantir que o resgate ocorresse de forma segura. Quando recebemos a confirmação de que estavam sob a proteção da DKBA, a sensação foi indescritível – talvez porque, naquele momento, sabíamos que havíamos conseguido resgatar dois brasileiros, filhos da dona Cleide e do senhor Antônio. Informar os pais foi um dos momentos mais emocionantes de toda a operação.

Nossa luta, porém, está longe de acabar. Ainda há centenas de milhares de pessoas presas nessa rede criminosa, e seguimos trabalhando para que mais vítimas possam ser libertadas.

O tráfico humano para fins de exploração trabalhista tem crescido globalmente, muitas vezes ligado a crimes financeiros e fraudes digitais. Como empresas e governos podem atuar de maneira mais eficaz para coibir essa prática?

Empresas e governos precisam agir de forma mais integrada. As empresas devem implementar mecanismos mais rigorosos de verificação de suas cadeias de suprimentos e garantir que suas práticas empresariais estejam livres de exploração. Já os governos devem fortalecer a legislação, aumentar a fiscalização e investir na capacitação de suas forças de segurança. A colaboração entre setores privados e públicos é fundamental para o sucesso das ações.

Quais são os principais desafios jurídicos enfrentados na responsabilização de criminosos envolvidos no tráfico humano? As leis atuais são suficientes?

Um dos principais desafios jurídicos é a transnacionalidade do crime. O tráfico humano atravessa fronteiras, e muitos criminosos ficam impunes devido à falta de acordos internacionais eficazes. Embora existam leis importantes, como a Lei 13.344/2016 no Brasil, ainda há uma lacuna na implementação dessas normas, principalmente em termos de recursos e de articulação entre as autoridades de diferentes países. O Brasil possue leis, mas precisamos fazer a lei ser aplicada com todo seu rigor, dessa forma teremos atingido o objetivo de que o crime nao compensa, do contrário, o crime lucra e nao se intimida. 
Além disso, a morosidade dos processos judiciais e a dificuldade em coletar provas, especialmente em casos que envolvem redes criminosas bem estruturadas, tornam a responsabilização ainda mais complexa. Muitas vítimas têm medo de denunciar por conta de represálias ou pela falta de suporte adequado após o resgate, o que enfraquece os processos legais.

Outro desafio significativo é a responsabilização das empresas que, direta ou indiretamente, se beneficiam do trabalho forçado. Ainda há brechas legais que permitem que grandes corporações terceirizem a exploração, dificultando a punição dos verdadeiros responsáveis. A implementação de mecanismos mais rigorosos de due diligence e a criação de tratados internacionais específicos, como o que está sendo discutido no Conselho de Direitos Humanos da ONU, poderiam fortalecer a responsabilização de todos os envolvidos.

No Brasil, a legislação existe, mas precisamos garantir que seja aplicada com todo seu rigor. Somente assim conseguiremos alcançar o objetivo de mostrar que o crime não compensa. Caso contrário, o tráfico humano continuará sendo um negócio altamente lucrativo e de baixo risco para os criminosos.

Acredita que a criação de um tratado internacional sobre empresas e direitos humanos, como o que está em discussão no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra, seria um avanço importante na responsabilização de empresas pelo crime de tráfico humano? Qual é a sua opinião sobre a construção desse dispositivo internacional?

Sim, acredito que seria um avanço significativo. As empresas têm um papel central na cadeia de fornecimento global, e, muitas vezes, não assumem a responsabilidade pelas condições de trabalho de seus empregados, especialmente em países com menos fiscalização. Um tratado internacional pode criar um padrão global para a responsabilidade das empresas e fortalecer os mecanismos de controle e penalização, incentivando-as a adotar práticas mais transparentes e éticas.

Como a tecnologia pode ser usada para combater o tráfico humano? Há alguma inovação recente que tenha feito diferença no trabalho de vocês?

A tecnologia tem sido uma aliada indispensável no combate ao tráfico humano, permitindo que investigações sejam conduzidas com maior precisão, rapidez e alcance global. Ferramentas avançadas de inteligência artificial, análise forense digital e monitoramento de comunicações têm possibilitado a identificação de redes criminosas, facilitando a localização de vítimas e suspeitos.

Duas tecnologias que têm sido um divisor de águas nesse trabalho são Clearview AI e Cellebrite, ambas parceiras da The Exodus Road Brasil.

  • Clearview AI é uma ferramenta de reconhecimento facial que utiliza uma base de dados com bilhões de imagens públicas para identificar indivíduos em tempo real. Essa tecnologia tem sido crucial para localizar vítimas desaparecidas e identificar traficantes, cruzando imagens de redes sociais, sites públicos e bancos de dados de segurança. Em operações de tráfico humano, Clearview pode acelerar significativamente a identificação de vítimas exploradas em anúncios online ou mídias sociais, facilitando ações rápidas das autoridades.

  • Cellebrite é uma plataforma forense digital que permite extrair, analisar e interpretar dados de dispositivos móveis, computadores e até aplicativos na nuvem. No contexto do tráfico humano, essa tecnologia tem sido essencial para decifrar comunicações entre traficantes, rastrear rotas utilizadas para transporte de vítimas e coletar provas digitais para processos judiciais. Muitas vítimas são aliciadas e controladas por meio de mensagens em aplicativos como WhatsApp, Telegram e redes sociais, e a análise forense desses dados pode revelar padrões de recrutamento e coação. Além disso, a Cellebrite também oferece soluções de criptografia e recuperação de dado que permitem acessar informações bloqueadas em dispositivos apreendidos durante investigações.

A parceria da The Exodus Road Brasil com essas empresas tem permitido que agentes de segurança pública tenham acesso a essas tecnologias inovadoras, ampliando a capacidade de resposta às redes criminosas. A integração dessas ferramentas com o trabalho das forças de segurança e o treinamento adequado de profissionais garante um combate mais eficiente e estratégico ao tráfico humano. Como costumo parafrasear Rui Barbosa: “Quando a justiça tarda, ela falha.” O mesmo acontece quando negligenciamos o uso de ferramentas tecnológicas no enfrentamento ao crime. Se queremos um sistema de justiça eficiente, ele precisa ser tão bem estruturado quanto o crime organizado.

Olhando para o futuro, qual seria o maior avanço que você gostaria de ver na luta contra o tráfico humano nos próximos cinco anos?


No futuro, espero ver uma colaboração mais sólida e eficaz entre governos, empresas e organizações da sociedade civil, garantindo que a luta contra o tráfico humano seja uma prioridade global. Além disso, é fundamental que haja um aumento significativo nas denúncias e resgates de vítimas, acompanhado de políticas públicas mais robustas e bem implementadas.

Acredito que um dos maiores avanços seria a ampliação de programas de prevenção e conscientização em larga escala, com foco na educação e no fortalecimento das redes de apoio às vítimas. Precisamos garantir que as pessoas compreendam os sinais do tráfico humano e saibam como agir, reduzindo a vulnerabilidade de populações em risco.

Também considero essencial uma maior coordenação internacional no enfrentamento desse crime. O tráfico humano é o terceiro crime mais lucrativo do mundo, mas no Brasil ele segue drasticamente subnotificado. Isso precisa mudar. O tráfico de pessoas não acontece de forma isolada – ele está diretamente ligado ao tráfico de drogas, ao contrabando de armas, à lavagem de dinheiro e até às apostas ilegais. Ele opera diante de nossos olhos, infiltrado em outras redes criminosas, mas ainda assim permanece invisível para muitos.

O avanço que mais desejo ver nos próximos cinco anos é a interrupção desse ciclo de impunidade, para que o tráfico humano deixe de ser um crime silencioso e se torne uma prioridade real na agenda de segurança e justiça.