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Coluna Davi Tangerino Advogados

Os impactos de tese tributária com modulação de efeitos em crimes tributários

O artigo desta semana da coluna Davi Tangerino Advogados tem autoria do advogado Caio Giuranno

Em que pese o já consolidado jargão de “independência das instâncias”, a relação entre o Direito Penal e o Tributário constitui, se não uma exceção, ao menos uma flexibilização do conceito, sobretudo para a ocorrência do artigo 1º da Lei n. 8.137/90 (Lei de Crimes Tributários), que, conforme entendimento consolidado, depende da constituição do crédito tributário pelo órgão exclusivamente competente, qual seja, a autoridade administrativa tributária (art. 142 do Código Tributário Nacional).

Ocorre que, evidentemente, os institutos e princípios que regem o Direito Tributário não são os mesmos que regem o Direito Penal, bem como não costuma ser levado em consideração pelas Cortes que as teses fiscais debatidas podem ter repercussão na esfera criminal. A lógica descompassada dessas duas áreas cria situações que demandam uma atenção especial do intérprete, em especial no caso de modulação de efeitos de teses tributárias e seu impacto no processo penal.

Para ilustrar, tomemos como exemplo a discussão tributária sobre incidência de ICMS em deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica. Na ADC 49, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o imposto não incide nessas operações, pois não há fato gerador. Em sede de Embargos de Declaração, o efeito da decisão foi modulado: o entendimento valeria apenas para o exercício financeiro de 2024 em diante, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação do julgamento.

Foge do escopo desse texto discutir o mérito da decisão. O relevante para a presente análise é a declaração do STF: ainda que não seja legal a incidência de ICMS no deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica, por motivos de segurança jurídica, os créditos tributários prévios ao exercício financeiro de 2024 continuam hígidos, salvo se o contribuinte persistiu na discussão administrativa e/ou judiciária e esta não se encerrou antes da publicação do julgamento.

Com base nesse entendimento, todos os contribuintes que não recolheram ICMS em operações deste porte antes do exercício financeiro de 2024 e que não discutiram a autuação fiscal no âmbito administrativo e judicial (ou que os procedimentos transitaram em julgado antes do julgamento da ADC 49) podem se enquadrar no crime disposto no art. 1º da Lei de Crimes Tributários.

É nesse ponto que princípios do Direito Penal colidem com o Tributário. Isso, porque a modulação de efeitos busca resguardar o “interesse social e a segurança jurídica” (art. 927, § 3º, do Código de Processo Civil). É razoável, sob essa ótica, que determinados julgados, ainda que de caráter declaratórios, não tenham o condão de desconstituir a coisa julgada ou interferir abruptamente no meio socioeconômico.

A lógica do Direito Penal, por sua vez, é absolutamente distinta, pois sua principal característica é a aptidão para impor penas privativas de liberdade aos indivíduos. Nessa seara, não cabe a ponderação de que determinado entendimento não será aplicado imediatamente por motivos de segurança jurídica — ressalvadas, é claro, as hipóteses de Leis temporárias e excepcionais, que mereceriam uma análise mais profunda.

Portanto, é irrelevante no âmbito criminal se há modulação de efeitos no juízo tributário, pois a modulação de efeitos configura uma ponderação de princípios que, no âmbito extrapenal, não considera preceitos como o princípio da liberdade, da culpabilidade, dentre outros. Tomando-se esses preceitos próprios da esfera penal, conclui-se que a invocação do “interesse social e da segurança jurídica” não justifica a continuidade de um procedimento criminal se a conduta do sujeito passivo não configurar qualquer ilegalidade desde o princípio.

Ressalta-se que o exemplo descrito trata de situação em que o STF proferiu decisão de caráter declaratório. Assim, afirma-se que o não recolhimento de ICMS nessas operações nunca foi ilegal. Não haveria qualquer sentido, sob a ótica penal, insistir em um procedimento baseado em um crédito tributário cuja manutenção se justifica apenas por razões pragmáticas.

É fundamental distinguir que a simples constituição do crédito tributário não desincumbe as autoridades de persecução penal de fazerem uma avaliação sobre a ilegalidade da conduta apurada. Isso não significa exigir que se adentre nos pormenores do mérito tributário — o que seria ilegal —, mas que considere que a referida autuação fiscal se dá por motivos de política tributária e não pela violação do ordenamento jurídico.

Nesse sentido, é inviável que, sob o ponto de vista dos princípios da legalidade estrita, da intervenção mínima e da ausência de lesividade, subsista procedimento criminal amparado em tese tributária que teve seus efeitos modulados.

Dessa forma, conclui-se que, em procedimentos penais tributários, deve-se ter atenção se a manutenção da constituição do crédito tributário se dá em virtude de modulação de efeitos no âmbito fiscal. Caso positivo, a conduta deve ser considerada atípica, pois, em que pese a preservação da autuação administrativa, não houve violação de qualquer dever legal.